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Comércio
de drogas no Brasil indica um estado de coisas próximo à
demência
(5/9/1999)
Mortes a crédito
JURANDIR FREIRE COSTA
Há
um mês, aproximadamente, 12 pessoas foram mortas na zona central
do Rio, em uma disputa pelo comando do tráfico de drogas.
No mesmo dia, as agências de notícias informavam que
14 sérvios haviam sido assassinados em Kosovo. A morte dos
14 sérvios fez os dirigentes europeus, encarregados da tutela
política do Kosovo, franzirem a testa e pedirem providências
imediatas. A morte dos 12 favelados cariocas fez o comandante-geral
da Polícia Militar comentar que a polícia havia sido
previamente informada da troca de tiros, mas nada pudera fazer,
pois os bandidos haviam "realizado um apagão" e
o morro estava às escuras.
Dois pesos, duas medidas. Os conflitos étnicos que ameaçam
a segurança econômica e política da Europa rica
merecem preocupação dos chefes de Estado das opulentas
nações ocidentais; a carnificina diária entre
pequenos bandidos da "periferia do Ocidente" nem sequer
tiram o sono dos agentes da segurança pública.
Não se trata de acusar a polícia de corrupção
ou de não cumprir seu dever. O problema é policial,
mas não é só, nem principalmente, policial.
O que esse horror desperta é algo mais grave. Ele é
sinal de que o sentido do valor da vida, entre nós, vem mudando
numa velocidade vertiginosa.
Aprendemos, ao longo do tempo, a dizer que a vida deve ser respeitada,
por se tratar de "um bem em si". Poucos, no entanto, aceitariam
a idéia de que a vida mantida a qualquer preço seja,
de fato, um Bem. Viver sem poder aspirar, mesmo de modo remoto,
ao bem-estar, à felicidade ou à liberdade; viver sujeito
à humilhação, à indignidade ou à
miséria físico-moral; subsistir sem consciência
de estar vivo, como em casos de lesões físicas gravemente
incapacitantes, tudo isso acaba por retirar da vida seu caráter
de bem precioso. Aprendemos a respeitar a vida, desde que a "vida
tenha sentido".
Assim, poucas desditas são tão cruéis e poucos
crimes tão pavorosos quanto perder ou ser privado da possibilidade
de dar sentido à própria vida. Obras de ficção
como "A Escolha de Sofia", de William Styron, "Johnny
Vai à Guerra", de Dalton Trumbo, "É Isto
um Homem?", de Primo Levi, ou o magistral "Coração
nas Trevas", de Joseph Conrad, mostraram o que significa sobreviver
sem saber "para quê". Estamos, bem ou mal, equipados
para lidar com dores e prazeres. Ambos cabem em nossos corpos e
mentes. Mas o absurdo, a gratuidade do infortúnio, a impossibilidade
de entender "por que vivemos" paralisam o centro vital
do Eu e desmontam o sentimento do valor da existência de forma,
muitas vezes, irreversível.
O comércio de drogas ilegais no Brasil é o sintoma
escandaloso de um estado de coisas que, se não alcança
os piores níveis da estupidez humana, se aproxima da demência.
Os consumidores de cocaína, em geral, pertencem a um grupo
social que não pode mais passar sem o êxtase das drogas,
pois a vida que levam chegou quase ao ponto zero de futilidade sociocultural;
os fornecedores de cocaína, por sua vez, não podem
dispensar as brutalidades e assassinatos cotidianos, pois foram
levados a desconhecer o que é viver em comunidade ou coletividade.
Os primeiros se apegam à vida, prolongando "os prazeres
e os dias", em um ritual regado a sangue de jovens pobres,
tornados "bandidos traficantes"; os segundos consomem
suas breves existências a serviço do desvario de quem
perdeu a razão de viver. Os ricos empenham as vidas, e os
pobres, as mortes. Todos conhecemos essas mortes a crédito
com data marcada de cobrança; todos fingimos ignorar essa
odiosa barganha, na qual as vítimas, mesmo depois de mortas,
serão os criminosos dos noticiários policiais.
Nunca a lenda do "vampiro aristocrata", que nutre o tédio
eterno e agonizante sugando a vida alheia, se aproximou tanto do
real. Em um lado da cidade, a minoria mimada, de noite em noite,
de cheque em cheque, erra insaciável "à procura
de Mr. Goodbar"; no outro lado, o "depósito"
dos que nada são, o estoque de corpos à espera do
aceno para o abatedouro, onde serão torturados, mutilados,
chacinados e jogados, em "noites escuras", nas valas imundas
e montes de lixos. Esses oferecem seus 13, 14, 15 ou 20 anos de
idade aos risos estampados nas revistas chiques e nos "carnets
mondains". Quem duvidar, veja o belo e sensível documentário
de João Salles, Walter Salles Jr. e Katia Lundt sobre o tráfico
de drogas nos morros do Rio de Janeiro.
Será que, de fato, alguém acredita que o "problema
do tráfico de cocaína" está na Colômbia,
nos morros cariocas, nas favelas paulistas ou na corrupção
policial? Será que alguém já considerou, seriamente,
os motivos que levam adultos e adolescentes brasileiros a se tornarem
dependentes do consumo de cocaína?
Será que jamais nos perguntamos se "o problema da cocaína"
se instalou no lugar de "problemas" que esquecemos, ao
perder o interesse por tudo além da fronteira de nosso bem-estar
físico ou sentimental?
Moralismo piegas, dirão os porta-vozes da cultura do cinismo,
esses mesmos que tentam ridicularizar qualquer anseio ou iniciativa
em prol de um mundo mais justo. Mas contra fatos não há
argumentos. Não existe "problema de cocaína"
no Butão, assim como não existiu "problema de
cocaína" no Ocidente, enquanto estivemos preocupados
com o futuro, com a história e com a construção
de uma vida mais digna para todos.
Desejo de cocaína não está inscrito nos genes
nem é uma tendência latente do psiquismo, pronta a
explodir quando aparece o papelote e as carteiras polpudas estão
à mão. Desejo de cocaína surge quando o trabalho
avilta quem o faz, não obstante a gorda remuneração;
quando ser "careta" é uma vergonha, já que
o vizinho famoso, moderno e liberado é quem diz quais os
hábitos de quem porta o "touch of class"; quando
a vida, sob o peso da competição e da ganância,
começa a estalar; quando o medo de não estar entre
os "winners" faz da excitação química
o substituto caricato do sucesso invejado; quando, enfim, se aprendeu
que o "traficantezinho" sujo, feio, mirrado e desdentado
é, no máximo, um candidato a R$ 100 ou R$ 200 por
mês, logo, uma vida que interessa tanto quanto a das pulgas
da Groenlândia.
Como disse Arendt, "onde os melhores perdem a esperança,
e os piores, o temor", poucas saídas restam, entre elas
a cocaína. Sentido da vida não se improvisa; valor
da vida não se compra pronto. Ou voltamos a crer que somos
mais do que nossos pequenos prazeres ou alimentamos nossa moral
vampiresca, até que um raio de sol venha, finalmente, dar
cabo de vidas ocas que amesquinham a grandeza que a só a
vida de amor ao mundo pode exibir.
Leia mais: Descaminhos
do caráter
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