Prioridade é editar as peças preservadas; universidade torna disponível pela Internet acesso a cópias eletrônicas de manuscritos mineiros originais


Partituras de Minas lutam contra traças e extravios


Adriana Zehbrauskas/Folha Imagem
Aluízio Viegas, 59, arquivista da Lira São-Joanense, em frente à sede da orquestra, na cidade mineira de São João Del Rey


do enviado a Minas

A pequena sala sem janelas é mobiliada por duas longas estantes que são de ferro para não atrair cupim. Seis prateleiras em cada uma. Um desumidificador e um aparelhinho contra ácaros funcionam permanentemente.

Dentro de pastas, dispostas orizontalmente, descansam perto de 900 velhas partituras.

Algumas já relativamente conhecidas entre os iniciados, como a "Antífona de Nossa Senhora", composta em 1787 por José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita. Outras -como boa parte do acervo de anônimos- ainda permanecem não executadas há pelo menos dois séculos.

É assim, em Minas Gerais, o arquivo de peças do período colonial em estágio mais adiantado de restauro e catalogação. Encontra-se dentro de um casarão localizado ao pé de uma ladeira muito íngreme, em Ouro Preto. É a Casa do Pilar, que abriga o setor de musicologia do arquivo histórico do Museu da Inconfidência.

Mary Angela Biason, musicóloga, coloca luvas de plástico para manipular cada uma das folhas de uma coleção que Francisco Curt Lange (1903-1997), alemão naturalizado uruguaio, reuniu desde os anos 40 -e que Régis Duprat vem, desde 1982, orientando a catalogação. Dois volumes sobre o acervo já foram publicados.

Mas há também outros arquivos que são verdadeiros tesouros culturais. Dois deles estão em São João Del Rey, no acervo de duas orquestras: a Lira São-Joanense e a Ribeiro Bastos (antes chamada Partido da Música da Igreja de São Francisco). A partir dos anos 1770, elas já disputavam contratos para musicar atos litúrgicos das confrarias e irmandades -e ainda hoje se batem pelo título de conjunto de atividade contínua mais antigo nas Américas.

"O papel dessas orquestras foi fundamental na preservação dos acervos", diz Anna Maria Parsons, criadora do Centro de Estudos do Século 18 na Universidade Federal de Ouro Preto e ligada à Orquestra Ribeiro Bastos.
A regra geral, segundo ela, é a seguinte: com uma orquestra em atividade, seu chefe e regente tem no estoque de partituras um patrimônio para negociar a renovação dos contratos com as irmandades e com as igrejas.

Mas, se a orquestra cessa suas atividades, os acervos se extraviam ou se perdem, como ocorreu após a segunda decadência de Ouro Preto (a primeira foi no início do século 19, com o fim do ciclo do ouro), depois que a capital de Minas foi transferida, em 1897, para Belo Horizonte.

Ninguém arrisca estimar o quanto se perdeu antes que se chegasse a um conjunto preservado de 2.500 partituras, o que já constitui uma riqueza invejável. Apenas superada no continente americano, diz Amaral Vieira, especialista brasileiro em música sacra, pelo México e pelo Peru.

Há perdas que deixariam qualquer cristão inconformado, como a relatada por Aluízio Viegas, arquivista da Lira São-Joanense.

Pois bem, em 1946, foi incinerado por um descendente, como papel inútil e velho, parte do arquivo pessoal do maestro Lourenço José Fernandes Braziel, morto em 1831 e que teve seus papéis inventariados em razão de uma disputa do espólio por dois de seus herdeiros. Só em sinfonias ou aberturas eram 23.

Márcio Miranda Pontes, professor e pesquisador da Uemg (Universidade do Estado de Minas Gerais), relata que uma tia distante, ao enviuvar de um maestro de banda, atirou ao rio, de uma ponte, todas as partituras do finado.

Folclore
Há muito folclore sobre iniciativas de última hora com que Curt Lange teria salvado arquivos da destruição. Laudecir Marcelino, o "Pardal", artista plástico em Ouro Preto, menciona a de um sacristão que desobedeceu a ordem de um padre para queimar uns papéis que "juntavam traças". E a de um padre baixinho que subia em velhos antifonários para ganhar alguns centímetros de altura e dar maior estatura a suas homilias.

Nem todos os arquivos têm a sorte daquele mantido pela cúria episcopal de Mariana, com seus oito armários metálicos de quatro gavetas cada um. O acesso não é tão fácil. Está tudo num dos cômodos da casa de d. Luciano Mendes de Almeida -e não nas instalações do inexistente Museu da Música, idealizado em 1973.

Mariana é uma cidade importante no circuito do barroco. Teve seu primeiro bispo nomeado em 1749. Ganhou para a Sé um belo órgão de d. João 5º, de Portugal, cujo longo reinado coincide com o ciclo do ouro.

Foi ele quem criou o Real Seminário Patriarcal de Lisboa. Chegaram a ser despachados para Minas, diz a musicóloga Mary Biason, caixotes de partituras para enriquecer a qualidade musical da liturgia no Brasil colônia.

Com a impressão proibida pela metrópole, Mariana foi um pólo de disseminação de cópias manuscritas.
Padre Flávio Carneiro Rodrigues, atual responsável pelo arquivo, calcula ter mil peças catalogadas. Há poucos autógrafos que não sejam para órgão. Mas os originais do "Tercio" de Lobo de Mesquita ou do "Te Deum" de Manuel Dias de Oliveira já valeriam uma demorada visita.

Mariana, Ouro Preto e São João Del Rey são exemplos esparsos daquilo que não caracterizaria, ainda, um modismo iminente sobre o repertório colonial. Não há uma corrida de maestros e pesquisadores, com folhas de pentagramas em branco, na ansiosa confecção de cópias (fotocópias estragam esses papéis antigos).

Teoricamente, até seria fértil o terreno para que isso acontecesse. A globalização do mercado cultural poderia provocar, junto a uma minoria, movimento em busca de suas raízes musicais.

"Mas a prioridade é agora editar aquilo que temos, para tornar essas peças disponíveis", diz Anna Maria Parsons, da Orquestra Ribeiro Bastos, cujo acervo foi catalogado nos anos 80, quando a Funarte e a Fundação Roberto Marinho patrocinaram um projeto chamado "Musica Sacra no Campo das Vertentes".

Foi também naquela época que a Universidade Federal de Minas Gerais patrocinou dois encontros nacionais de pesquisadores que não tiveram continuidade.

Existem os congressos bianuais da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música, em Juiz de Fora. Mas há bem pouco fora da área acadêmica e nada patrocinado por algum banco ou empresa de telecomunicação, interessados em associar sua marca a um empurrão que leve o repertório colonial para mais perto do grande público.

Qualidade de escrita, essas partituras têm. Há muita coisa já gravada. O musicólogo Maurício Monteiro, especialista no assunto, da Cultura FM de São Paulo, elaborou recentemente uma lista de 20 CDS com boas interpretações de autores como Souza Negrão, Nunes Garcia, Silva Gomes e Fernandes da Trindade.

Há ainda o choque estético provocado numa noite de outubro de 1998, no Teatro São Pedro, em São Paulo, quando a Osesp (Orquestra Sinfônica do Estado) interpretou o "Te Deum" atribuído a Manuel Dias de Oliveira. O público, jejuno no repertório, ficou sorridentemente surpreso.

O barroco mineiro, no entanto, não surgiu para as salas de concerto. Ele tem suas raízes na liturgia do catolicismo praticado pelo povo durante o período colonial. Pode ser música "erudita" pelo fato de ser registrada em pentagrama, mas não foi em momento algum música das elites.

Quando, no século 18, o fluxo do ouro irrigava a economia mineira, as orquestras -então chamadas "partidos de música"- eram profissionais e tinham intérpretes de melhor qualidade do que a partir de 1805, quando, por falta de dinheiro, a música se desprofissionalizou. Só a partir de então se aplica o estereótipo que enxerga o instrumentista ou o compositor como mulato e analfabeto, capaz apenas de ler e escrever música, mas, nesse ofício, absolutamente genial. Alguns dos compositores do século 18 eram mulatos (nem todos), mas em geral tinham alta escolaridade. É o que transparece pela caligrafia das anotações de andamento nos autógrafos até hoje conservados.

Modismos
Entre os séculos 18 e 19, Minas também sofreu os efeitos de modismos. Embora, em essência, se continuassem a executar peças do período colonial, adaptações das partituras passaram a incluir outros instrumentos, como a clarineta, e, com isso, talvez partituras com a instrumentação antiga tenham se extraviado, diz Aluízio Viegas, da Lira São-Joanense.

José Maria Neves, co-maestro, com sua irmã Stella Neves Valle, da Orquestra Ribeiro Bastos, propôs há 15 anos que todos os arquivos existentes, mesmo mantendo seus acervos, unificassem seus catálogos.

Seria uma forma de saber se a parte de viola que falta em determinada partitura de Mariana não estaria, em caligrafia de copista, em alguma gaveta de Tiradentes ou Diamantina.

Um exemplo dessa espécie de mutirão: da "Antífona de Quarta-Feira", de
Jerônimo de Souza Lobo, a Uemg não tem a parte para primeiro violino.

Mas há uma cópia dela no Museu da Inconfidência. O museu é, aliás, o único que pode teoricamente fazer "dialogar" as coleções de seu acervo.

Além daquela legada por Curt Lange, ele tem coleções menores doadas por cidades mineiras como Pitangui, Ponte Nova e Campanha. Outros 27 títulos do Arquivo Público Mineiro, de Belo Horizonte, estão sob sua custódia.

São exemplos de que não há, propriamente, um conjunto desconhecido de preciosidades que qualquer especialista mais curioso consiga desvendar. Grosso modo, Minas já sabe o que tem.

A catalogação da Orquestra Ribeiro Bastos, que só agora será posta em computador, revela um acervo com 14.076 folhas de missas, 1.734 de novenas, 1.292 de matinas e 204 de aberturas.

Na rival, a Lira São-Joanense, o trabalho de catalogação ainda não começou. Mas sua estimativa é a de que, das cerca de 10 mil folhas, um quinto seja do século 18.

Há, por fim, o caso das 381 partituras distribuídas em 160 CD-Roms (endereço para pedidos: mmiranda@uemg.br) e colocadas na Internet (www.tmb.uemg.br) pelo Departamento de Música da Universidade do Estado.

O projeto é coordenado por Domingos Sávio Lins Brandão, também maestro do Collegium Musicum de Minas, e Márcio Miranda Pontes.

Esse "Thesaurus Musicae Brasiliensis" tomou por base o espólio do maestro Vespaziano Gregório dos Santos, ele próprio herdeiro de outros maestros de Ouro Preto com partituras e atividades que mergulham no século 18.

(JOÃO BATISTA NATALI)

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