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Bom
mesmo era o padre José Maurício
do enviado ao Rio
Mencionado no "The New Grove Dictionary of Music and Musicians",
espécie de Bíblia da música, como "compositor
brasileiro, o mais importante de sua época", o padre
José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) teve sua existência
marcada por uma série de contradições (era
padre, mas teve seis filhos; tinha sangue negro, mas obteve destaque
em uma sociedade escravocrata) que refletem as aceleradas mudanças
políticas por que passou o Brasil em sua época.
A maior autoridade no padre José Maurício é
a regente e musicóloga carioca Cleofe Person de Mattos, 80,
autora do "Catálogo Temático de Obras do Padre
José Maurício Nunes Garcia" (1970) e de "José
Maurício Nunes Garcia -°Biografia" (Fundação
Biblioteca Nacional, 1997). Mas, como ela não se encontra
em condições de saúde para uma entrevista,
quem falou à Folha sobre o padre-mestre foi o compositor
e regente Ernani Aguiar, 49, professor de regência da Escola
de Música da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Música.
Dedicado à pesquisa e interpretação da música
colonial brasileira, já realizou mais de 50 audições
contemporâneas de obras do período, tendo gravado no
final de 99, um bom CD com as "Novenas" do padre-mestre.
"Não tenho dúvida de que o padre José
Maurício é o maior compositor das Américas
nessa época", afirma. Embora inclua peças para
teclado, aberturas orquestrais e uma ópera ("Le Due
Ge- melle", atualmente perdida), a obra do padre José
Maurício é eminentemente sacra. Se muitos autores
apontam influências estrangeiras em seu trabalho, para Aguiar,
sua principal característica nacional é a linha melódica:
"As melodias do padre José Maurício têm
caráter de modinha".
Filho do modesto tenente Apolinário Nunes Garcia e de uma
negra, Victoria Maria da Cruz, José Maurício já
dava aulas de música aos 12 anos. Virtuose do teclado e regente,
o mulato foi perseguido pelo estigma de sua cor.
Quando a Corte portuguesa se muda para o Brasil, em 1808, e d. João
6º (ainda príncipe regente) quer fazê-lo seu mestre-de-capela,
os lusitanos se opõem, alegando seu "defeito físico".
Isso não impede que fique com o cargo.
Compondo até então em estilo despojado, a partir do
convívio com instrumentistas e cantores da Capela Real, vindos
de Portugal, suas obras sofrem influência italiana, aproximando-se
do virtuosismo vocal de Jommelli, Cimarosa e Rossini. São
desse período obras como o "Réquiem" e a
"Missa de Santa Cecília".
Para o historiador da música Maurício Monteiro, a
mudança de estilo do padre reflete as transformações
ocorridas na sociedade brasileira. Monteiro defende, em outubro,
na USP, a tese de doutorado "A Construção do
Gosto", que investiga o impacto da chegada da Corte portuguesa
ao Brasil.
Além da influência italiana, Monteiro discute com a
influência do classicismo vienense de Mozart e Haydn na obra
do padre, representada por Sigismund Neukomm, aluno de Haydn que
viveu no Brasil entre 1816 e 1821 e que descreveu o padre José
Maurício como "o primeiro improvisador do mundo".
"Graças à chegada de d. João ao Brasil,
forma-se aqui uma classe colonial urbana e cortesã",
diz Monteiro. "A grande ocasião social não é
mais a missa, mas o teatro. O rei gosta de ópera e funda
o Teatro Régio, como réplica do Teatro São
Carlos, de Lisboa."
Embora seja difícil endossar hoje o mito que faz do padre
José Maurício um "Mozart mulato", vítima
das intrigas do "Salieri lusitano" -o compositor Marcos
Portugal-, não restam dúvidas de que, com a chegada
do colega português, o brasileiro fica em segundo plano.
Mas ambos acabam sendo igualados pela penúria em que a Independência
lança os instrumentistas da época. José Maurício
passa a cozinhar, lavar, engomar, costurar e fabricar sapatos, morrendo
em 1830. Dois anos depois, a morte do padre mineiro João
de Deus de Castro Lobo encerra o capítulo colonial da história
da música brasileira. (IFP)
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