|
02/03/2007
Carta da semana
A redução da imputabilidade penal
“Submeter o jovem a um
regime especial diverso do Direito Penal comum, em maior ou
menor escala, surge no século passado, apesar dessa
idéia haver deixado um grande rastro na história.
Em verdade, para determinar as conseqüências da
prática de um crime nunca foi irrelevante a idade do
autor.
Jamais a idade (que traduz o nível
de uso da razão/discernimento) foi irrelevante na história
da luta do homem contra o crime. Desde os obscuros tempos
em que o Direito (acientífico ainda) Penal não
passava de mera vingança e cujas reprimendas eram tão
cruéis quanto ofensivas à construção
(ao longo de séculos de muita luta sangrenta) do valor
humano como algo transcendental e axiomático. Muitas
legislações antigas e contemporâneas têm
tratado a reação penal na faixa etária
da criança (o infans, dos romanos) ao jovem-adulto
com base no critério gradual (de 12 até 15 ou
16 anos e daí até 21 ou 23 anos), só
medidas educativas naquela primeira etapa e com medidas de
cunho repressivo/intimidatório, mas sempre acompanhadas
de atenuantes em face da pouca idade do delinqüente.
O Direito Penal, hoje, está
inapto para resolver a crise de insegurança social
(violência em geral e crime) que assola essa quadra
histórica aqui e noutros países. Mas no Brasil
essa crise conta com elementos negativos adicionais. Por exemplo:
a Unesco revela, numa pesquisa que é vergonhosa para
o Brasil, que 50% dos brasileiros na faixa dos 15 anos estão
abaixo ou no chamado nível 1 de alfabetização,
uma marca estabelecida pela Unesco que classifica os estudantes
que conseguem apenas lidar com tarefas muito básicas
de leitura. Numa escala sobre níveis de compreensão
de leitura englobando 41 países, o Brasil está
quase no fim da fila: 37ª posição - à
frente somente da Macedônia, da Albânia, da Indonésia
e do Peru. Há muitos outros exemplos daqueles elementos
negativos adicionais. Essa inaptidão ocorre, sobretudo
porque há sobre o Direito Penal uma excessiva sobrecarga,
que o transformou em um instituto regulador de inúmeras
condutas, às vezes de pouca gravidade. Hoje em dia
todos os males se pretende resolver com o Direito Penal, até
para lavar-se as mão (“as consciências
falam alto: “já fiz a minha parte, agora é
com o Poder Judiciário, MP, Polícia...”).
Ora, essa deturpação banalizou e desgastou o
sistema penal (e, sobretudo o penitenciário, porque
todos querem cadeias para todos os males). Esse desgaste tanto
é físico (penitenciarias sem vagas), ideológico
(descrença na força intimidatória genérica)
e psicológico (intimida a poucos, ou só aos
criminosos eventuais/passionais, aos criminosos por opção,
os “profissionais” jamais se intimidam com a pena
e até mesmo com a cadeia, como temos hoje). Isso não
se dá tão-só pela incerteza da pena,
senão também pela própria habitualidade/acomodação
do delinqüente com o mal.
Portanto, se faz necessário
um melhor uso do Direito Administrativo e não apenas
do Direito Penal. O Direito Administrativo é o conjunto
de normas jurídicas pertencentes ao Direito Público.
Direito Administrativo e Direito Penal, se aproximam no aspecto
de ambos aplicarem sanções em virtude de ilícitos.
Todavia, o Direito Administrativo pode e deve exercer forte
influencia no controle de comportamentos anti-sociais. Se
mais não for, pelo menos o Direito Administrativo deveria,
entre nós, ser o Direito da excelência nas ações
estatais, ele poderia exigir e sancionar a falta de resultados
na ação do administrador público. O principio
da economicidade (eficiência proporcional ao gasto público)
aplicado as Febens, as penitencias, mas, sobretudo e antes
de tudo, às escolas públicas, aos programas
sociais, aos governantes certamente teriam mais eficácia
que muitas das soluções-engodos implantadas,
anunciadas ou discutidas. Há um grave e caro ilícito
administrativo nessas ações estatais (municipais,
estaduais e federais) ineficazes.
Como bem pode se perceber, antes
da redução da maioridade penal, até por
dever de consciência, por razões de simples inteligência
e bom senso, ou ainda por razoável (apenas razoável)
senso de racionalidade temos de algumas premissas.
Desfazendo ‘verdades’enganosas
Não procede a alegação de que o adolescente
de hoje recebe maior carga de informações do
que o adolescente do inicio do século passado e logo
tem mais discernimento do que aquele. Se há, de fato,
mais informações hoje, elas são mais
quantitativas que qualitativas, ou sejam o jovem é
mais bombardeado por informações deletérias
que educativas e isso se verifica até no interior das
escolas.
Ao contrário do que muita diz,
o adolescente brasileiro, como de resto a maioria da população
brasileira, tem sido vítima de um sistema econômico
que está vitimando a todos e mais aos pobres e desvalidos.
A educação não
é de qualidade e o sistema de saúde está
totalmente falido. Não há emprego para os pais
e sequer perspectivas para o adolescente, que não consegue
enxergar além da exclusão a que está
submetido com sua família e a da conduta reprovável
e “reforçadora” de certas elites de nossa
sociedade. Que Brasil é esse? Não é,
por certo, o dos brasileiros!
É má fé
ou desinformação o que se prega quanto ao fato
do direito de voto do adolescente ser justificativa para a
responsabilidade penal. São, pois, temas completamente
diferentes e com exigências psíquicas bem diferentes.
O voto aos 16 anos não é obrigatório
e não dá direito de ser votado, depois em varias
civilizações o voto é ou foi deferido
quem têm meios econômicos, a quem distingue a
mão direita da esquerda. Trata-se apenas e tão
somente de uma prática incentivadora e aceleradora
da cidadania ativa, jamais demonstração de maturidade
suficiente para imputabilidade penal. Essa imputabilidade
exige, no mínimo, o uso da razão e a culpabilidade
que sempre é suportada por todos os que têm parcela
de culpa no fato criminoso (e o Estado/sociedade também
dividem essa culpa como é o caso da atenuação
para os jovens delinqüente, isso sempre foi uma lógica
moral).
Ao contrário do que se possa
pensar, o sistema penal (que abrange o prisional) empurra
os adultos ainda mais para a marginalidade, tendo reincidências
de 40 a 70% após saírem da prisão. Enquanto,
o ECA pode dar respostas adequadas quando aplicado corretamente,
por exemplo os programas de Liberdade Assistida e Prestação
de Serviços à Comunidade de Joinville (SC),
no ano de 1999, que tiveram índices de reincidência
de apenas 7 e 5%, respectivamente (reincidência é
a prática de outro ato inflacionar quando o adolescente
já cumpriu medida sócio-educativa).
Quanto ao ECA
O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) não
foi ainda aplicado em sua parte nobre e social. Assim, o que
se precisa fazer é dar eficácia social, cumprimento
efetivo e pleno a essa lei, isso até para estarmos
fiéis no concerto internacional às Regras de
Beijing (1985/ONU) e da Convenção (1989/ONU)
dos Direitos da Criança e do Adolescente (de zero até
18 e excepcionalmente até 21anos) que situam esse destinatário
em situação privilegiada (porque uma criança/adolescente
não é um adulto de calça curta) enquanto
credor da tutela estatal, que vai desde a oferta de creche/educandários
e pré-escola, reforço pedagógico, escola,
cultura, esporte, lazer, ações de saúde,
desenvolvimento/envolvimento comunitário e implantação
do binômio município/menor, para todas as crianças
e adolescentes e senão com boa qualidade, pelo menos,
em níveis inicialmente razoáveis.
Há ainda o dever estatal e
comunitário de implantação de programas
de renda mínima, de combate à evasão
escolar, à exploração sexual infanto-juvenil
e exploração do trabalho infantil, bem como
a implantação dos conselhos municipais de direitos
da criança e do adolescente e dos conselhos tutelares.
Só após essa básica rede de tutela e
prevenção em geral é se pode falar em
reforma mais estrutural do ECA, cujas grandes deficiências
são: mais direitos que deveres (isso, aliás,
já é nossa tradição) gerando a
sensação de imunidade aos deveres; a falta de
previsão de meios e recursos para toda a rede necessária
e prioritária de proteção e prevenção;
e o eloqüente silêncio quanto à tão
indispensável e oportuna tutela administrativa de menores,
como instituto suplementar de assistência em geral e
representação jurídica dos menores (cobrança
judicial inclusive e sobretudo conta o Estado) sem isso o
ECA restou mais uma promessa vazia da lei.
Quiçá após o
resgate dessa divida legal (de mais de uma década)
do Estado e da sociedade entre nos, posamos, então,
pensar numa tão delicada e comprometedora, sob todos
os aspectos, alteração da idade mínima
para a imputabilidade penal. Com efeito, essa alteração
exige máximo respaldo moral e técnico, sob pena
de nos lançarmos, enquanto civilização,
numa lama de vingança pura e abjeta e pior, vingança
do mais poderoso sobre o mais fraco, como soí acontecer
no âmbito por aqui (onde o crime de abigeato era mais
punido que o crime de fraude contra saúde publica,
onde as cadeias pouco conhecem os muitos criminosos ricos/poderosos).
Assim, qualquer alteração na idade penal haverá
de ser conjugada com uma nova concepção de unidade
de reeducação de crianças e jovens, pois,
caso contrário, estaremos varrendo a sujeira para debaixo
do tapete...
Soluções
A redução da idade penal não reduziu
a criminalidade nos poucos países em foi adotada, assim
como a pena de morte. E que o criminoso não age segundo
essa lógica intimidatória, não o criminoso
que nos assusta a todos, os “profissionais” do
crime (criminoso por opção de vida), raramente
o efeito intimidatório da pena, ainda que a mais cruel,
interfere no ato ou momento irracional dos que cometem crime
por deslizes eventuais ou passionais, daí a utilidade
reduzidíssima da pena tão só intimidatória.
Se a mera punição de crianças e jovens
fosse verdadeiramente fator de contenção ao
crime, os Estados Unidos, que punem (em alguns Estados) menores
de 18 anos, não seriam um exemplo de alta taxa de criminalidade
entre os adolescentes. Também não haveria tantos
crimes no interior das cadeias e Febens, se essa sanção
fosse, de fato, utilmente intimidatória ou eficaz contra
o crime.
A redução da maioridade, em primeiro lugar,
fere princípio consagrado no Direito brasileiro (e
em países tidos como civilizados) de que o jovem é
um ser em formação, diverso, pois, do adulto.
Isso já estava, em maior ou menor graus, na base das
preocupações seculares dos direito antigos.
O adolescente pode e deve ser punido pelo que faz de errado,
mas essa sanção precisa ter, predominante e
efetivamente, um caráter educativo/ressocializante.
Isso tem sido a lógica moral e social na historia da
humanidade. É absolutamente falso afirmar que o ECA
não pune menores infratores; pune e não reeduca,
o que é pior.
Enfim, pode-se repensar tudo no ECA desde que com isenção
e racionalidade. Por isso, as mentes raivosas e movidas por
emoções (compreensíveis ou não,
de vitimas de crime ou só mesmo por formação
iracunda) só podem turvar a situação
delicada da delinqüência, sobretudo a infanto-juvenil.
A maioria do povo a cada dia será mais a favor da pena
de morte e da redução da maioridade penal porque
apavorado com a criminalidade a sua porta, imagina e é
influenciado (pelos falsos conhecedores e pela mídia
que pouco sabe ou quer saber, em mor parte dela) ser isso
uma solução justa e de boa eficácia social.
Ora, a mateira não é tão técnica
que exige uma boa dose de estudos pra o povo, ser utilmente
consultado. Seria como perguntar ao povo se ele é a
favor da fissão ou da fusão nuclear. O limite
temporal (de três anos) da pena aplicável aos
menores, pode ser repensado, porem sempre atento ao infenso
fenômeno da prisionização.
Sabe-se que de um total de 57 legislações estrangeiras
analisadas, apenas 17% adotam idade menor do que 18 anos como
critério para definição legal de adulto
e logo responsável penalmente. E, dentre as que não
adotam tal critério, destacam-se: Bermudas, Chipre,
Estados Unidos, Grécia, Haiti, Índia, Inglaterra,
Marrocos, Nicarágua, São Vicente e Granadas.
Destaque-se que a Alemanha e a Espanha elevaram recentemente
para 18 a idade penal e a primeira criou ainda um sistema
especial para julgar os jovens na faixa de 18 a 21 anos. Com
exceção de Estados Unidos e Inglaterra, todos
os demais países são considerados pela ONU como
países de médio ou baixo índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), o que torna a punição de jovens
infratores ainda mais problemática. Enquanto nos EUA
e Inglaterra a juventude tem assegurada condições
mínimas de saúde, alimentação
e educação, nos demais países (como no
Brasil) isto está longe de acontecer. Nos países
ditos desenvolvidos pode fazer algum sentido argumentar que
a sociedade deu aos jovens o mínimo necessário
e, com base nesse pressuposto, responsabilizar individualmente
os que transgridem a lei.
Por outro lado, na Nicarágua,
Índia ou no Brasil, este pressuposto é totalmente
falso: em todo o país, apenas 3,96% dos adolescentes
que cumprem medida sócio-educativa concluíram
o ensino fundamental. É imoral, assim, querer equiparar
a legislação penal juvenil brasileira à
inglesa ou norte-americana - esquecendo-se da boa qualidade
de vida que os jovens desfrutam há décadas naqueles
países. Que nosso Estado e nossa sociedade assegurem
primeiro as mesmas condições e depois, quiçá,
terá alguma moral para cogitar de responsabilidade
individual dos jovens e alterar a lei penal punir e vingar-se
daquele que o abandonou à própria sorte. E aqui
não se argumente que o problema da delinqüência
juvenil aqui é mais grave que alhures e que por isso
a punição deve ser mais rigorosa: tomando 55
países da pesquisa da ONU como base, na média
os jovens representam 11,6% do total de infratores, enquanto
no Brasil a participação dos jovens na criminalidade
está em torno de 10%. Portanto, dentro dos padrões
internacionais e abaixo mesmo do que se deveria esperar, em
virtude das carências generalizadas dos jovens brasileiros.
No Japão, onde tem tudo, os jovens representam 42,6%
dos infratores e ainda assim a idade penal é de 20
anos. Se o Brasil chama a atenção por algum
motivo é pela enorme proporção de jovens
vítimas de crimes e não pela de infratores.
Por fim, o argumento da universalidade
da punição legal aos menores de 18 anos, além
de precário como argumento lógico e ético,
é empiricamente falso. Dados da ONU, que realiza a
cada quatro anos a pesquisa Crime Trends (Tendências
do Crime), revelam que são minoria os países
que definem o adulto como pessoa menor de 18 anos e que a
maior parte destes é composta por países que
não asseguram os direitos básicos da cidadania
aos seus jovens”,
Luiz Otavio O Amaral, advogado
-
lamaral@conectanet.com.br
|