HOME | NOTÍCIAS  | SÓ SÃO PAULO | COMUNIDADE | CIDADÃO JORNALISTA | QUEM SOMOS


REFLEXÃO


Envie seu comentário

 
urbanidade
11/02/2004

Uma profissão sem nome

Durante 16 anos, Sandra Leone acordava de madrugada e repetia o meticuloso ritual de preparar dezenas de instrumentos cirúrgicos para as operações. Chegava a vislumbrar, por instantes, beleza na composição harmônica das peças, estendidas numa bandeja. Não sabia ainda que estava ensaiando, naqueles arranjos assépticos e metálicos, uma nova profissão.

Incomodada com a frieza cirúrgica e com o fato de passar tanto tempo entre doentes, ela se cansou da rotina hospitalar e trocou os instrumentos cirúrgicos pelas flores. "Sinceramente, não sei definir o que faço", diz.

Sandra integra a legião de jovens que não sabe de que gosta quando escolhe a faculdade. Fez direito, mas, desiludida, estudou em cursos técnicos de instrumentação cirúrgica. Depois de abandonar as mesas de operação, descobriu, por acaso, que dava para ganhar dinheiro com algo que fazia apenas por prazer.

Habitualmente amigas lhe pediam que decorasse com flores as suas festas. Sandra não cobrava, era passatempo. "Compensava minha timidez crônica com a paixão solitária pelos detalhes." Até que um dia uma executiva estava num jantar, gostou dos arranjos e quis saber de onde vinham. Sem tempo de cuidar de sua casa, convidou Sandra para ser uma espécie de "assessora para assuntos florais". "Não entendi direito, achei estranho, mas tinha tempo e aceitei."

A tarefa seria fazer as composições de flores, mantendo-as frescas, nos vasos de dentro da casa. Pelo prazer do detalhe, Sandra deixava pequenas surpresas pela casa.

Estava ali diante de uma nova atividade profissional, um misto de decoradora com jardineira, "baby-sitter floral" e até, quem sabe, psicóloga. "Tentava conhecer um pouco os donos da casa para saber que tipo de flores combinava mais com eles."

Com o estresse paulistano, mais mulheres executivas, de agendas entulhadas, sempre apressadas demais para afazeres domésticos, começaram a contratar o serviço -mais uma demanda da vida atribulada do paulistano.

Dos tempos antigos sobrou um hábito. Para comprar flores, continua acordando quando ainda está escuro. Agora com prazer: segundo ela, um dos bons programas da madrugada paulistana é observar as cores e sentir os cheiros das flores na Ceagesp, quase um oásis para quem está ao lado do rio Pinheiros e das marginais. "Isso transformou minha vida." A profissão, ainda sem nome, já tem clientes.


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

COLUNAS ANTERIORES
09/02/2004 Fome zero, ladroagem 100
08/02/2004
A luz no fim do túnel é uma chama de gás?
04/02/2004
Vila vertical
02/02/2004
A irresistível oferta dos traficantes
01/02/2004
Como medir se um candidato a prefeito é sério
28/01/2004
O assassinato das cerejeiras
27/01/2004
A identidade de Jorge Cordeiro
25/01/2004
Meu inesquecível janeiro em São Paulo
23/01/2004
Erro de Cristovam Buarque foi a paixão
19/01/2004
Expedição Gepp e Maia