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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
25/01/2004

Meu inesquecível janeiro em São Paulo

Nasci no Ibirapuera, depois morei na Vila Buarque, mudei-me para o Bexiga e agora estou na Vila Madalena. Sou, portanto, um paulistano de sorte. Consegui viver cercado, nesses bairros, de natureza, artistas, intelectuais e boêmios. Gosto muito de morar aqui; poderia, se quisesse, ter ficado em Nova York, mas, sinceramente, considero São Paulo mais interessante. Gosto, mas não consigo sentir orgulho da cidade. Temos, de fato, o que comemorar nessa festa de 450 anos?

À falta de beleza natural somaram-se degradação urbana, violência e miséria, criando uma comunidade de seres acuados. As crianças perderam as ruas para brincar; os pedestres perderam as calçadas; as casas perderam o direito de deixar as janelas abertas. As madrugadas perderam a inocência. Perdemos até a garoa.

A educação pública é ruim, o transporte, precário, os carros congestionam o tráfego e fazem com que, em alguns horários e locais, andar a pé seja mais veloz. Viramos uma imensa periferia salpicada de ilhas de qualidade de vida, onde imperam exércitos de valets, de flanelinhas, de pedintes, de seguranças privados protegendo casas e edifícios que fazem lembrar edificações medievais. Nem mesmo aprendemos a enfrentar as seculares enchentes.

Apesar disso tudo -e das minhas noites insones à espera da chegada dos filhos adolescentes e, devido a um assalto, de ter sido obrigado a espalhar, na minha casa, engenhocas de segurança com as quais mal consigo lidar- , estou convencido de que há motivos para comemorar. Não comemoro, porém, o que fomos, mas o que estamos começando a ser.

São Paulo está metida em uma extraordinária efervescência, o que faz daqui um fértil laboratório. A cidade ficou, paradoxalmente, pior, no entanto mais interessante. Olhando da planície a modorra imponente da reforma ministerial, tramada no planalto, sinto-me ainda mais entusiasmado pela singularidade de uma comunidade.

Tenho testemunhado a disseminação de organizações de bairro e até mesmo de rua, interferindo nos debates urbanos, apoiados na imprensa e no Ministério Público. Indivíduos, empresas e associações assumem praças, monumentos, parques, canteiros; entidades não-governamentais desenvolvem experiências nas áreas de educação, saúde, ambiente ou cultura, buscando parcerias com o setor público.

Apesar da lentidão e incompetência crônica dos governos, já se vêem, embora esparsamente, integrações de ações conduzidas nos vários níveis de poder; muitos programas de distribuição de renda contemplam redes formadas por verbas federais, estaduais e municipais, numa intricada tecnologia social.

Pela primeira vez em sua história, São Paulo começa a mudar o sentido de sua expansão, valorizando as regiões centrais. Não é pouca coisa nessa trágica rotina de periferização. Insisto que, em nenhuma parte do mundo, atualmente, existem tantas obras em uma região central, o que se deve à conjunção de investimentos públicos federais, estaduais e municipais e privados.

Empresários organizam-se para repovoar a orla ferroviária -são 135 quilômetros de linhas férreas somente dentro da cidade-, criando novos bairros em áreas que, devido à debandada das indústrias, estão abandonadas. E, aproveitando os trilhos, terão um transporte de qualidade. É a maior fronteira urbana do planeta a ser desbravada e recolonizada.

Tudo isso está ocorrendo porque chegamos ao limite de uma cidade inviável, na qual a violência é mais uma conseqüência do descuido e da desagregação. Desfez-se a idéia de que estamos numa coletividade. Mas, devido à força econômica, o capital humano conseguiu prosperar e nunca deixou de atrair e reter pessoas criativas, seduzidas pela possibilidade de prosperar.

Por isso, este mês de janeiro será, para mim, inesquecível. Não me lembro de ter visto aqui tanta gente fazendo tanta coisa interessante, em uma profusão de exposições, shows, concertos, inaugurações de museus, palestras, vídeos, livros. É como se a arte vencesse o medo e estabelecesse um marco da consciência de uma coletividade.

É como se os seres sitiados saíssem para fora e mostrassem toda a criatividade de um agrupamento humano. Aparece, então, a melhor de nossas paisagens, que é a paisagem humana. Somos, afinal, um lugar em que qualquer indivíduo que se preze sempre tem um projeto na cabeça.

Essa deliciosa perspectiva, mesmo que experimentada em uma festividade, não tem volta -por isso, comemoro.

PS - Peço desculpa pelo bairrismo explícito, mas quando imagino um futuro melhor para São Paulo visualizo uma imensa Vila Madalena, onde ainda se consegue andar a pé nas ruas, passeando entre artesãos, artistas, intelectuais e boêmios. É aconchegante voltar para casa à noite e ouvir as pessoas conversando e rindo nos bares ou nas esquinas. É um bairro em que sobrevive, aqui e ali, a imagem de crianças brincando nas ruas e de senhoras na frente de suas casas paparicando. Junto com o provincianismo, existe uma força cosmopolita de seus designers, produtores de vídeo, fotógrafos. O inesquecível deste janeiro é que, mesmo que episodicamente, senti o gosto de ver São Paulo como uma gigantesca Vila Madalena.


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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