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REFLEXÃO


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folha de s. paulo
13 /10/2003

A geografia do medo

O bairrismo , embora seja associado a uma visão pequena, atrasada e provinciana, está entrando na moda.

Prospera nas regiões metropolitanas o efeito "casulo". Inseguras no trânsito, sentindo-se ameaçadas pela violência, incomodadas com os pedintes que se avolumam a cada esquina, famílias de classe média e alta tentam se locomover o menos possível e se esforçam para fazer do bairro uma espécie de país independente, capaz de satisfazer todas as suas necessidades.

Isso significa que, na geografia do medo, comprar, divertir-se ou escolher a escola dos filhos está cada vez mais condicionado à proximidade do lar. Quanto mais perto, melhor; quanto mais longe, mais ameaçador.

O efeito "casulo" é visível numa pesquisa realizada pela InterScience com habitantes de classe média e alta da cidade de São Paulo, que foi concluída na semana passada,
Ao comprar um imóvel, 80% dos entrevistados informam que levam em conta a auto-suficiência do bairro, de olho na variedade de serviços e de lojas.

Cerca de 70% dos entrevistados querem fazer suas compras perto de casa; 65% não querem ir longe para se divertir e, se puderem, optam pelos cinemas e teatros do bairro.

Na hora de escolher a escola dos filhos, nada menos que 80% usam o critério geográfico. Ou seja, a boa escola é aquela que, antes de mais nada, está perto e não deixa as crianças presas no trânsito. Para o adolescente, viver longe é ficar distante também dos amigos, já que quase todos moram nos arredores da escola. O bairro passa a ser o cenário quase auto-suficiente da construção das identidades individuais.

Combinando limitação provinciana com caos metropolitano, o efeito "casulo" é consequência da degradação das grandes cidades brasileiras, tão visível nas pilhas de estatísticas divulgadas na últimas três semanas. Na segunda-feira, estudo da ONU exibiu o crescimento acelerado do número de favelados, bem maior do que o aumento da população. Na sexta-feira, o IBGE divulgou mais dados sobre a deterioração dos empregos e dos salários. Na semana anterior, divulgaram-se estatísticas que mostram como as grandes cidades caíram rapidamente no ranking de qualidade de vida.

A crise explode principalmente nas maiores cidades e, principalmente, nas regiões metropolitanas. Não é à toa que os eleitores, acuados em cada esquina, começam a se interessar mais por assuntos locais, provincianos, do que por temas nacionais, distantes, abstratos. O cotidiano dos indivíduos é, em larga medida, o que acontece na cidade. É uma nova dimensão da política brasileira, com a valorização do local.
Apesar do barril de pólvora metropolitano, a temática urbana não faz parte das prioridades federais brasileiras.

Alguém tente lembrar-se de alguma ação consistente dos ex-presidentes, a começar de Fernando Henrique Cardoso, nascido no Rio e criado em São Paulo, para melhorar as grandes cidades em parceria com governos estaduais e prefeituras. Pouco, para ser benevolente, vai encontrar. Tente também procurar algum discurso de Lula com propostas para as regiões metropolitanas. Alguém já ouviu alguma palavra inspiradora de Olívio Dutra, o ministro das Cidades?

Fala-se muito mais dos sem-terra, que fazem parte da agenda do passado, do que do caos urbano, o grande gargalo político do futuro. É na cidade que hoje mora a maioria dos sem-tudo, o que agrava as tensões. Mais uma vez, como se viu na semana passada, estudantes agitaram Salvador, o que, vou repetir, é apenas um aperitivo do que vai, mais cedo ou mais tarde, se espalhar pelo país.

É mais do que óbvio que o país precisa urgentemente de uma agenda para as regiões metropolitanas. Urbanistas recomendam que, em cada região, sejam criadas comissões com representantes estaduais, federais e municipais para traçar políticas coordenadas de investimento em infra-estrutura urbana e de racionalização dos investimentos sociais.

Nossas metrópoles e seus problemas são gigantes, mas a visão dos políticos sobre temas urbanos é pífia. Uma das poucas idéias que me chamaram a atenção nos últimos tempos -e se é viável não sei- é transformar a região metropolitana de São Paulo em novo Estado. Para a prosperidade do Brasil, um região tão vital, centro econômico e financeiro, não deveria ser tão frágil socialmente. O mecanismo político que aí está simplesmente não está funcionando.

PS - Por falar em crise social, temos pouco a comemorar neste Dia da Criança. Há, porém, uma chance de boa notícia. Está sendo elaborado, ainda reservadamente, no governo federal um plano interministerial, a ser divulgado neste mês, com foco na criança e no adolescente. Há metas e prazos definidos. Há muito se batalha para quebrar a fragmentação de políticas sociais. Para acompanhar o andamento do plano (verificar se sai ou não do papel) e evitar que vire uma peça de marketing, será lançada com ele uma rede independente de dezenas de entidades não-governamentais e de organismos internacionais para monitorar periodicamente as ações.

Coluna originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo, aos domingos

   
 
 
 
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