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REFLEXÃO


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folha de s. Paulo
18/01/2004

Essa crise é uma asneira

A proporção que assumiu o debate sobre o fichamento de turistas dos EUA se explica pela tradicional falta de assunto do mês de janeiro, quando as notícias escasseiam, e pela baixa auto-estima do brasileiro. Em essência, o episódio é uma asneira.

Transformou-se uma questão burocrática numa ofensa ao orgulho nacional e em ensaio de crise bilateral, o que por si só revela como nos sentimos inferiores aos Estados Unidos. Um sentimento que vem, em parte, do servilismo cultural brasileiro.

Quando o desrespeitoso comandante da American Airlines Dale Robbin Hersh fez o gesto obsceno ao ser fotografado na alfândega, ganhou seus 15 minutos de fama e ofereceu a imagem que faltava para que toda uma nação se sentisse humilhada por uma potência estrangeira. Pela repercussão da ofensa, o insignificante sujeito passou a ser representante não de uma empresa de aviação, mas de todo um país.

A única coisa séria dessa "crise" é o fato de que prospera, no país, um antiamericanismo, reflexo, entre outros motivos, da arrogância imperial da política externa dos Estados Unidos.

O problema da reciprocidade brasileira é que, de verdade, não era recíproca.
Os americanos não inventaram a identificação eletrônica para humilhar ninguém, mas para se prevenirem de eventuais ataques terroristas. Se estavam exagerando ou não, é outro problema. Nesse período do ano, eu estava em Nova York, suposto alvo de atentados. Sinceramente, sentia-me protegido por saber que as autoridades faziam tudo o que podiam para garantir a segurança de quem estava lá. Não é preciso acompanhar de perto os conflitos do Oriente Médio para saber que a existência de homens-bomba é uma rotina.

O Brasil não estava ameaçado de nenhum ataque. De nada servirão as digitais e as fotos dos turistas, mas, até aí, tudo bem. É apenas um problema de desperdício de recursos públicos.

Problema mesmo foi que, aqui, o fichamento virou humilhação pela falta de recursos tecnológicos nos aeroportos do país. Turistas se viram obrigados a ficar desnecessariamente horas e mais horas nas filas para mostrar nossa altivez patriótica.

Não se puniu o governo dos Estados Unidos, mas os cidadãos que vieram ao país gastar seus dólares e gerar empregos. Enquanto isso, as massas aplaudiam a coragem do juiz que assegurou a soberania brasileira. O presidente Lula mostrou, de peito estufado, independência nacional e ratificou o fichamento. Mais aplausos.
Jornalistas que tentaram mostrar o ridículo dessa atitude logo foram classificados de servis ao império, desprovidos de dignidade patriótica.

A histeria faz confundir uma atitude contra um determinado governo de cujas posições discordamos -e esse governo Bush merece mesmo muitas críticas- com a população do país. Não gostaria de ser criticado por ser brasileiro porque, por exemplo, fomos presididos por Fernando Collor de Mello ou governados pelos militares.

É comum pessoas não gostarem do governo de Israel (e eu também não gosto) e atacarem generalizadamente os israelenses e mesmo os judeus. Não gostar de todo um povo por causa de seus governantes é indigência, manipulada por demagogos. Há importantes segmentos da opinião pública americana que atacam duramente a histeria bélica do governo Bush, inclusive a política de trator com a América Latina.

A alma nacional foi, então, lavada porque um bando de turistas ficou esperando na fila por até sete horas? Como escrevi no início deste artigo, se houvesse mais assuntos em janeiro, quando ainda estamos todos embalados pela amenidade das festas de fim de ano, e não fosse a baixa auto-estima do brasileiro, o caso até poderia provocar protestos, mas jamais ganhar status de crise.

O orgulho nacional deveria estar (e está acima) muito acima disso.

PS - Para fazer justiça e contraponto ao antiamericanismo, dou um depoimento baseado no tempo em que vivi nos Estados Unidos: morando lá por três anos, vi muitas coisas detestáveis, mas testemunhei uma solidariedade comunitária que não encontrei em nenhum outro país -e quem disser que não existe estará mentindo ou não conhece o país. Sempre me impressionou muito a quantidade de empresários que doam fortunas para a educação, a saúde e a cultura. Quem não tem dinheiro doa tempo para ajudar creches, escolas, asilos, parques, museus. Também me impressionava especialmente a abertura com que as universidades, mesmo as mais renomadas, recebiam estudantes e pesquisadores estrangeiros, generosamente compartilhando conhecimento e valorizando talentos. Parte da elite intelectual brasileira foi e é beneficiada por essa abertura acadêmica.


Coluna originalmente publicada na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.

   
 
 
 

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