REFLEXÃO


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folha de s.paulo
18/02/2008

Igor, 27, relata suas viagens pelas raves

Freqüentador assíduo de academias de musculação, ele começou a se drogar usando anabolizantes injetáveis para moldar o corpo

Jovem esportista da classe média que entrou no mundo do ecstasy após desilusão amorosa conta suas memórias


Era uma manhã de segunda-feira, no ano passado, quando Igor Nunes Marin se observou detidamente diante do espelho do banheiro de seu quarto, como se procurasse alguém desaparecido. Tinha perdido cerca de 20 quilos, os músculos dos braços pareciam murchos, as olheiras destacavam-se no rosto abatido. "Será que vou algum dia voltar?", pensou, ainda se encarando, desolado, no espelho. O que via, naquela manhã, pouco lembrava o esportista aficionado por musculação e basquete.

O contraste entre a imagem do espelho e a da memória ficava mais forte quando ele se lembrava de que, até pouco tempo atrás, tinha namorada e emprego. Estava só e desempregado, dependendo do dinheiro dos pais. Até mesmo seu desejo sexual ele sentia que vinha, pouco a pouco, diminuindo e justamente por causa do excesso do consumo de ecstasy, a droga vendida como a pílula do prazer.

Naquele momento, seu corpo tinha se transformado numa espécie de laboratório de experimentos químicos. Por determinação de sua psiquiatra, ele tomava uma série de fortes antidepressivos para tentar se livrar da dependência das drogas, o que lhe deixava com a sensação de estar anestesiado. Mas, nas raves que freqüentava, misturava-os com abundantes doses de uísque, várias "balas" (como são conhecidas as pílulas de ecstasy) e até "doces" (LSD).

Num sítio do interior de São Paulo, numa dessas festas, que se prolongou por mais de 24 horas, ele notou que estava perdendo o controle. Berrou pedindo socorro aos amigos. "Bateu um desespero", recorda-se. Ninguém ouvia seus apelos, a música eletrônica dominava os sons do salão. Estatelou-se no chão. Lembra-se apenas da alucinação de que tinha, dentro da cabeça, um videogame que não sabia desligar.
Não se lembra de como acordou de manhã cedo sozinho numa praça em Osasco, com a roupa toda suja.

Na semana passada, Igor, 27, começou a organizar e escrever suas memórias para tentar entender como, no ano passado, se entregou ao consumo desenfreado de drogas sintéticas nas raves. "Viver resumiu-se à espera das festas." Há quatro meses, está limpo, submetido aos antidepressivos e à terapia.

Jovem da classe média paulista, Igor sempre estudou em escolas privadas e formou-se em marketing. Sentia-se um rapaz de família, com o projeto de ter uma casa cheia de filhos. Espírita, rezava todos os dias.

Freqüentador assíduo de academias de musculação, não se imaginava fazendo nada de errado ao abusar dos anabolizantes para moldar seu corpo. Usava obsessivamente anabolizantes injetáveis ou em comprimidos, sem se incomodar com os efeitos colaterais, como a irritabilidade. "Vejo agora que aquela vontade de ter o corpo perfeito estava escondendo uma fragilidade."

Trocou os coquetéis contínuos de anabolizantes que deixaram seu corpo de 1,80 m com 110 quilos pelas drogas sintéticas, ao entrar na trilha das raves pelo interior e pelo litoral de São Paulo.

Entrou nessa trilha por causa do tédio provocado por uma recente desilusão amorosa. Nem gostava de música eletrônica. Na sua primeira rave, levou um Ipod para ouvir seus pagodes. Até então, só usara maconha.

Deram-lhe meia pílula de ecstasy. "Não senti nada." Tomou mais. A partir daí, não seria mais o mesmo.

No dia seguinte, ao acordar em casa, percebeu-se mais triste do que nunca, pensando na desilusão amorosa. "A tristeza não passava." Ficou pior durante a semana. "Não quis sair de casa, queria ficar trancado no quarto, com as cortinas fechadas, sem luz." Animou-se, porém, a ir a mais uma rave, onde logo tomou um ecstasy com bebida alcoólica. "Experimentei uma felicidade enorme, era como se eu fosse uma fortaleza, a pessoa mais interessante da festa." Encantava-o a paisagem humana de tanta gente jovem e bonita. "Por todos os lados, era cercado de mulheres lindas."

Fortaleza significava também ser mais forte do que qualquer vício. "Eu olhava aquele pedacinho de pílula que entrava no meu corpo de 110 quilos e pensava que aquilo, uma coisa tão pequena, não me dominaria." Experimentou até um pó veterinário usado em cavalos.

À tristeza aguda mesclaram-se episódios de pânico que reforçavam sua vontade de ficar trancado em casa. Perdera seu emprego e, ainda por cima, ouvira a seguinte frase da ex-namorada, impressionada com o efeito das drogas: "Não sei mais quem é você". Para completar, sua culpa não parava de crescer, ao ver o sofrimento dos pais. "Eu via meus pais chorando e chorava também."

As dores se desfaziam nas festas, mas sempre à custa de doses cada vez maiores de drogas, adquiridas facilmente por jovens, como ele, de classe média. "A verdade é que eles não se imaginam como traficantes. Certamente, eles se sentiriam ofendidos se fossem chamados de traficantes. Traficante, para eles, é aquele sujeito violento que vive no morro."

Aos poucos, Igor já não se espantava com algumas cenas das festas, como a de um rapaz nadando na grama como se estivesse no mar, a de outro que tentava voar dizendo-se Superman ou a de jovens adormecidos no lixo.

A euforia passou a misturar-se, também nas raves, ao pânico. "Numa noite, eu estava próximo da piscina. Vi suas águas subirem para me agarrar. Saí correndo. Pedi socorro. Olhava para as pessoas e todas tinham a cara de monstro."
Sabia que estava na hora de parar, mas não sabia como. Faltava-lhe força. Seu melhor amigo tentava, em vão, demovê-lo de ir às festas. Em casa, não dormia de noite. Às vezes, ia para a academia e chegava a andar por três horas na esteira. Recebeu, então, um ultimato da família: se não aceitasse o tratamento médico e a terapia, seria internado na marra.

Foi quando passou a ingerir os antidepressivos com LSD, ecstasy e bebida alcoólica. "Na minha memória, parecia que meu corpo não sentia dor." Com esse estado de espírito, naquela manhã de segunda-feira, olhou-se ao espelho à procura de sua própria imagem.

Depois de alguns meses, a combinação dos remédios com a terapia ajudou-o a evitar as drogas. Assim como o ajudou ter reatado com a namorada. Ao escrever suas memórias, cujo título provisório é "Voltei", imagina que saberá entender melhor tudo o que aconteceu -e, mais importante, nessa reconstrução, quem sabe venha a se sentir útil, transformando sua trajetória em aprendizado para mais gente.


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Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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