REFLEXÃO


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urbanidade
11/06/2008

Escritor das entrelinhas

Jornalista fez de sua rotina "massacrante" como operador de telemarketing tema
de livro-reportagem

Júnior Barreto queria virar escritor por uma única razão: relatar sua vivência no mundo do telemarketing. Nem precisaria sair da cadeira para realizar sua investigação. Havia nove anos estava metido, quase todos os dias, num call-center. "Testemunhei humilhações cotidianas", conta.

Filho de migrantes cearenses, Júnior veio com três anos para São Paulo, onde, ainda adolescente, foi vendedor de banca de jornal e contínuo. Aos 18 anos, conseguiu seu primeiro emprego em um call-center. "É um dos poucos lugares que aceitam jovens com pouca experiência."

Por isso, muitos, segundo ele, se submetem a humilhações como só poder ir ao banheiro a cada seis horas ou ter de colocar em sua mesa, como punição, a escultura de uma tartaruga. Incomodava-o ver como os operadores davam informações mecanicamente, sem entender direito o que liam, obrigados a seguir o "script". "Quem não seguia o "script" era advertido."

Viver de telemarketing, no entanto, era o que lhe garantia pagar a mensalidade da faculdade de jornalismo, onde preparava seu livro.

Não teve a menor dificuldade para escolher o tema de seu TCC (trabalho de conclusão de curso), cujo título é "Linha de frente - Os bastidores do telemarketing". A rotina do operador, obrigado a falar sobre empresas ou produtos que não conhece, é um massacre psicológico. "Há tantas regras para seguir, que um indivíduo fica descaracterizado. Você não é mais você, tudo é uma representação. Existe um segundo eu, uma sombra contínua."

À medida que escrevia seu livro-reportagem, Júnior foi percebendo que, além do jornalismo, resvalava a psicologia -escrever servia de válvula de escape.
"Colocar tudo no papel, relembrar as histórias, era como se eu estivesse numa terapia. Sentia como se estivesse recobrando integralmente minha identidade."
Diante do computador, só havia uma ordem a dele próprio. "Agora, quem mandava no "script" era apenas eu."

A "terapia jornalística" foi longe -sabia que, depois de contar sua história, não teria mais condições psicológicas de voltar para qualquer call-center. Apresentado o TCC, no final do ano passado, ele decidiu pedir uma licença do emprego para se dedicar à publicação do livro.

Conseguiu, por enquanto, fazer um único exemplar artesanal, graças à ajuda de amigos que trabalham num sindicato. Nem sabe se conseguirá fazer mais cópias nem se conseguirá virar repórter. Ainda não conseguiu escapar do anonimato que viveu no call-center, mas pelo menos já tem uma história para contar. É bem mais do que apenas um "script" para repetir.

PS- Coloquei abaixo trechos do livro de Júnior Barreto:

Capítulo 1: Primeiros passos
Capítulo 18: Como é ser operador?
Capítulo 31: Raio-x do callcenter

Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.

   
   
 
 

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