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06/12/2004
Grupo de teatro formado por vítimas de maus-tratos discute a violência através da arte

GRANDE SP - Mal Amadas só no nome. O Teatro Experimental Feminista Urbano Mal Amadas existe há 12 anos e discute a situação da mulher, que sofre violência doméstica e a relação desigual de gênero. O objetivo é interromper por meio da arte o ciclo de violação dos direitos das mulheres. As integrantes do grupo já sofreram agressão física e psicológica de seus maridos ou viveram em ambientes violentos.

O grupo Mal Amadas ocupa o espaço do Centro Informação Mulher (CIM), criado em 1979 por feministas. O CIM centraliza e registra a história de luta das mulheres. É uma referência fundamental como um centro de documentação e memória sobre a mulher no Brasil, atuando no movimento de mulheres e prestando serviços principalmente para grupos do movimento popular, entidades sindicais, pesquisadores sociais e acadêmicos. Possui 30 mil títulos entre livros, periódicos, teses, brochuras, folhetos, cartazes, dossiês de imprensa, fitas cassetes, fotos entre outros. No entanto, há oito anos atrás o CIM foi perdendo financiadores e está passando por dificuldades, assim a diretoria está fazendo um trabalho de recuperação para voltar a atender todo tipo de público.

As Mal Amadas saíram de Diadema há cerca de sete anos e assumiram a direção do CIM. Hoje, o elenco conta com quatro pessoas já que muitas seguiram outros caminhos. Por meio da linguagem teatral, as peças da Mal Amadas sempre se preocuparam em retratar a realidade da mulher e as relações de gênero. Após as apresentações, há um debate entre a comunidade e o elenco, em que muitas vezes as mulheres da platéia dão depoimentos e pedem conselhos de como devem proceder com seu companheiro violento. "O grupo de teatro continuou a fazer atendimento, quando a gente fazia apresentações nas escolas, nos conselhos, nas ruas, nas favelas. Era como se fosse uma orientação para as mulheres", afirma Marta Baião, presidente do CIM, diretora do grupo das Mal Amadas e psicodramatista.

O CIM não é um serviço de atendimento, mas de encaminhamento, pois as mulheres recebem uma orientação para denunciar seu companheiro na Delegacia da Mulher e registrar um boletim de ocorrência ou, simplesmente, ouvir um desabafo e conversar com outra mulher que já sofreu violência. Neuza Brito, atriz do grupo, está desde 1992 no teatro e é uma boa ouvinte e conselheira, pois apanhou duas vezes de seu marido e denunciou ambas na delegacia. Sua história de violência começou bem cedo já que via sua mãe sofrendo maus tratos de seu pai.

A mãe de Neuza era operária e acordava perto das quatro da manhã para entregar peças de automóveis numa das indústrias da região do grande ABC (SP). Quando caminhava com os filhos e um cabo de vassoura nas costas, onde todas as peças estavam acomodadas, era pega pelo marido, que estava escondido numa moita e tinha o prazer de jogar todas as peças no chão.

Desde pequena Neuza vivia entre a violência e o alcoolismo de seu pai. Mas conseguiu mudar o trajeto de sua história. Na primeira vez que foi agredida, seu marido a socou e a prendeu no sofá, deixando hematomas em seus braços. "Eu já tinha visto minha mãe apanhar várias vezes. Então, decici denunciá-lo. Fui até o fórum e fiz o corpo de delito. Na hora de passar no Fórum, o juiz virou para mim e disse: 'Se você apanhou é porque alguma coisa fez de errado. Volta pra casa e vai cuidar de seu marido e seus filhos'", conta Neuza.

Depois de um tempo, o marido de Neuza quebrou uma vassoura em cima dela. "Denunciei de novo, mas fui para a delegacia da mulher. Quando foram entregar a intimação na minha casa, meu marido estava dormindo e não queria se levantar para assinar. A oficial de justiça falou que se ele não levantasse, ela iria ao nosso quarto e se ele não comparecesse no dia, a oficial iria buscá-lo na firma", diz Neuza.

O marido de Neuza fala até hoje que nunca sofreu uma humilhação tão grande e nunca mais bateu em sua esposa. Ma a violência continuou no aspecto psicológico. Ele a xingava e humilhava por palavras. Apesar de tudo isso, Neuza trabalha no teatro e há dois anos faz reciclagem de papel e produz blocos, agendaa e álbuns de fotografia. Ela presta assessoria em entidades, dando aulas de reciclagem. Não desistiu de seu sonho que é cursar Artes Cênicas, mas para isso está completando o Ensino Fundamental no supletivo.

"Meu marido começou a reclamar que eu trabalhava, estudava e não via a cor do dinheiro. Até que eu virei e falei que estava juntando para fazer minha faculdade. Ele quis morrer. A partir desse dia, ele não queria mais ajudar em casa. Mas não desisti de estudar", declara Neuza.

De acordo com Marta Baião, atualmente, as mulheres estão intolerantes à violência que tem como causa as relações desiguais entre homem e mulher e a falta de informação, acarretando numa baixa auto-estima da mulher que não questiona sua relação. Outro tipo de violência é a simbólica, em que a mídia acirra cada vez a mais a condição da mulher como produto e reforça a relação patriarcal da sociedade. "A mídia massacra a mulher. Isso foi coisificado. Nós somos produtos, mercadorias, como cerveja", afirma Marta.

O teatro das Mal Amadas pretende estabelecer uma linguagem horizontal. O público participa e é obrigado a agir depois que assiste a peça. O teatro recupera o poder transformador do sujeito, em que as pessoas se sentem responsáveis por tudo de ruim e bom que ocorre na sociedade.

Com mais de 10 anos lidando com violência contra a mulher, Neuza se tornou referência em sua comunidade em Diadema. A vizinhança a procura para esclarecer dúvidas e desabafar. Ela inclusive já teve que esconder armas de vizinhos para evitar tragédias. "Os maridos me xingavam e ameaçavam. Teve um colocava música de galinha para me provocar até o dia que falei que o denunciaria. Como ele tinha ficha suja, parou com a música irritante", conta Neuza.

Além de Neuza, Elaine Militão também faz parte do elenco das Mal Amadas. Não sofreu nenhuma violência física, mas presenciou os maus tratos em sua mãe e avó. Sua mãe faleceu há quatros anos de câncer no pâncreas, depois de quinze dias sua avó também faleceu. "Minha mãe apanhou várias vezes até que um dia foi denunciá-lo e o policial virou e disse para meu pai que podia bater desde que não chegasse a sangrar tanto, senão seria obrigado a levá-lo preso. Enquanto isso, minha mãe gritava de tanta revolta", revela Militão.

"A primeira vez que vi minha mãe apanhando foi aos três anos de idade e ele conseguiu quebrar o dente da frente. Ele ficava com raiva de mim, porque sempre entrava no meio da discussão. O pior que não era só minha mãe que sofria. Até minha avó apanhava e o eu pai chegava a arrancar os cabelos dela. Depois de passar a briga, ele dizia com a maior cara de pau que estava possuído. Cresci amargurada, achando que nunca iria casar", conta Militão, que está casada há 11 anos.

Militão participou do grupo Os Filhos da Cegonha, um grupo formado por Marta quando fazia oficina entre os educadores da Escola Municipal Manuel Fiel Filho, que mais tarde se juntou com as Mal Amadas para discutir a relação da mulher na sociedade e violência nessa classe.

Tanto Neuza quanto Marta e Militão, afirmam que num cenário de violência doméstica, muitos maridos não permitem o uso de preservativos nas relações sexuais, deixando as mulheres expostas a doenças sexualmente transmissíveis (DST). O Programa Nacional de DST/Aids publicou o Boletim Epidemiológico da Aids, divulgado na última terça-feira (30/11), que teve 12599 notificações, em 2003, contra 10566, em 1998. Nos primeiros seis meses desse ano foram registrados 5538 casos de Aids entre mulheres. Esse número revela um crescimento da doença entre as mulheres.

"Minha avó também sofria violência com seu primeiro marido. Até que um dia ela apanhou tanto que uma vizinha usar uma espingarda pra impedir o marido dela de chegar perto. Nessa madrugada, ela resolveu partir da região próxima a Juazeiro do Norte [CE]", conta Militão.

Para Militão, o teatro representa alegria. É também a oportunidade de falar o que não consegue dizer em palavras e representar pela expressão corporal.

As Mal Amadas vão trabalhar os contos de Clarice Lispector, em espetáculo chamado As Narradoras de Clarice. Enquanto isso, o público pode conferir seu espetáculo Ovo - Metáfora do Sacrifício Feminino, uma teatralização de um conto de Clarice Lispector, o Ovo e Galinha. "O espectador tem que estar ciente que ver um ovo é impossível, mas escutá-lo , sentí-lo pode ser uma experiência prazerosa, mesmo porque ele é oval, por isso óbvio. Uma viagem filosófica-metafísica nas profundezas de um ovo, mesmo sabendo que ele é apenas a alma de uma galinha", diz Marta.



Serviço
CIM - Centro Informação Mulher
Praça Roosevelt, 605, Consolação - São Paulo
Tel. 3256-0003
centroimulher@ig.com.br ou malamadaneuza@ig.com.br.

As informações são do site Setor 3.

 
 
 

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