Entenda
um pouco mais do nobre ofício de criar instrumentos
similares aos dos séculos 17 e 18
Curiosidade, paixão pela música,
pela forma do instrumento, pelo som produzido por ele ou simplesmente
a completa impossibilidade financeira de adquirir um, o que
os força a construir os seus. Os luthiers brasileiros
que hoje se dedicam à refinada arte de moldar caixas
e cilindros, transformando-os em instrumentos com características
próximas dos que existiram nos séculos 17 e
18, não vêm de uma linhagem familiar tradicional
dedicada ao ofício, nem ao menos receberam a bênção
da própria família.
"Sofri resistência da minha mãe, que é
italiana, e meu pai, alemão, que viam com maus olhos
a minha mudança de área (vivia da arquitetura)
e acreditavam que aquilo tudo seria uma regressão",
diz Roberto Holz, de 58 anos, que fez sua primeira flauta
doce em 1984 por diversão. "Era um desafio muito
grande na época, porque a gente não tinha referência,
não tinha onde comprar ferramenta. Mas como houve demanda,
isso acabou me impulsionando. Me animei e pensei que, se eu
conseguisse vencer os obstáculos iniciais, poderia
viver disso. Deu certo", afirma ele.
Luciano Faria, de 33 anos, que há pouco mais de 10
anos também vem se dedicando à luteria em Pirassununga,
compartilhou dessa odisséia para fabricar o seu primeiro
alaúde, que demorou seis meses para ficar pronto: "Usei
um formão, um serrote, um martelo e uma plaina bem
pequena e ruim", relembra hoje, aos risos. A aproximação
com o alaúde aconteceu pelo fato de ter-se dedicado,
durante toda a infância e adolescência, ao seu
descendente, o violão. Com tanta vontade de tocar e
pouco dinheiro para comprar, brotou a necessidade de criar.
Apesar de suas vendas terem triplicado no Brasil do ano passado
até agora, Faria afirma que 90% de sua produção
ainda é destinada ao exterior. "Eu consegui ganhar
estabilidade", conta ele, que trabalha com apenas dois
assistentes. O luthier nascido no Rio acrescenta que, se pudesse,
viveria uma semana como músico e a seguinte como mágico
fazedor de instrumentos, mesmo tendo a certeza de que os sete
dias como intérprete "não pagariam minhas
contas".
O jovem músico Leonardo Takiy, de 20 anos, que será
bacharel em violão pela Unesp no ano que vem, esperou
cerca de um ano por seu alaúde, encomendado a Faria.
O luthier explica que a construção não
demora (leva apenas cerca de 10 dias), mas o problema é
a fila de espera. "Dos 50 a 60 instrumentos que fabrico
por ano, cerca de 17 são para o Brasil." O perfil
de seus compradores varia bastante - vai desde estudantes
de música, passa por músicos experientes e chega
até a senhores idosos fascinados pela beleza dos instrumentos,
ou seja, os colecionadores. O professor Ricardo Kanji, da
Universidade Livre de Música, onde desde março
do ano passado funciona um Núcleo de Música
Antiga (do qual muitos dos jovens músicos entrevistados
são integrantes, entre eles, Takiy), sente que o interesse
pela música antiga tem crescido não só
entre alunos de música, mas também entre o público
em geral.
Kanji, que faz parte de uma geração à
frente desses meninos, é um dos responsáveis
pela inserção da formação profissional
em música antiga no País, ao lado de diversos
outros nomes, como a musicista de viola da gamba Kristina
Augustin e a alaudista Silvana Scarinci. Movimento que começou,
timidamente, no fim dos anos 50 com o audacioso maestro Roberto
de Regina. Até bem pouco tempo atrás, coisa
de 20 anos, eles não tinham outra opção
a não ser estudar e se profissionalizar no exterior.
"Agora, os interessados em música antiga no Brasil
vão estudar fora depois de já terem recebido
uma boa formação aqui. E tudo isso graças
a um movimento que partiu das pessoas e não do governo",
sentencia Kristina.
Livia Deodato
O Estado de S.Paulo
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