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entrevista
16/11/2004
CEU deveria virar clube para pobres, sugere antropóloga

A antropóloga Eunice Durham, 72, defende uma maior democratização dos CEUs (centros educacionais unificados) sob a administração de José Serra (PSDB), prefeito eleito de São Paulo.

"Os CEUs precisam ser transformados em alguma coisa que atenda aos estudantes depois da escola pública regular, para tirá-los da rua e lhes dar uma ampliação curricular", afirma.

Para ela, os "escolões" paulistanos deveriam seguir o exemplo da Escola Parque, da Bahia, para onde os alunos iam depois de ter aulas numa escola pública regular.

Na Escola Parque, não havia aulas, só atividades recreativas.
"Com isso, você atendia a uma população maior e mantinha o investimento na melhoria do ensino fundamental", argumenta Durham, que é especialista em educação e foi secretária de Política Educacional do governo Fernando Henrique Cardoso.

A professora da USP (Universidade de São Paulo) acaba de lançar o livro "A Dinâmica da Cultura" (editora Cosacnaify), em que reúne ensaios que cobrem cinco décadas de pesquisas sob títulos como "A sociedade vista da periferia" e "Migrantes rurais", temas que estão no centro de seu embate contra possíveis simplificações marxistas.

Sobre esses assuntos, ela diz acreditar que o melhor resultado eleitoral do PT na extrema periferia de São Paulo não se deve a uma oposição de classes ou a uma identificação ideológica dos mais pobres com o partido, mas a uma "captura" de um "resíduo" da imigração iletrada para a capital paulista -ou analfabetos de chegada recente ou seus filhos.

Essas pessoas, afirma ela, por serem pouco integradas à economia e à sociedade, são provavelmente mais facilmente alcançáveis por uma eficiente militância de esquerda.

Folha - Qual a sua avaliação dos CEUs?
Durham - A primeira grande tentativa desse tipo foi feita com os Cieps [centros integrados de educação pública], no Rio de Janeiro, que o Darcy Ribeiro fundou. Mas era uma idéia que, na verdade, vem de uma iniciativa anterior, do Anísio Teixeira. É preciso muito cuidado com iniciativas que não se possam generalizar para a população. É necessário melhorar a qualidade do ensino para o conjunto da população. Quando você cria escolas de altíssima qualidade, você diminui o investimento no resto da população. O que tem acontecido freqüentemente na história dos municípios paulistas é isto: os governos fazem creches maravilhosas, modelo de país desenvolvido, e criam um número reduzido de creches. Atendem a uma porcentagem pequena da população, pagam muito bem aos professores e tiram fotografias fantásticas. Nesse esquema, ficou em grande parte para o governo estadual cobrir a rede. É muito fácil fazer um bom ensino se você reduz o atendimento. Não pode haver CEUs de um lado e escolas de lata de outro. É preciso ir igualando para cima. Mas o projeto dos CEUs é extremamente caro, sem proposta pedagógica inovadora, e, sem dúvida nenhuma, a população adora. Eu também gostaria. O projeto inicial dos CEUs é inspirado no Anísio Teixeira, que criou na Bahia uma coisa chamada Escola Parque. Era uma solução mais econômica. Nela, os estudantes tinham um período numa escola da rede municipal, e noutro período iam para a Escola Parque, onde não havia aulas regulares, mas os diferentes tipos de atividade que os CEUs fornecem. Com isso, você atendia a uma população maior e mantinha o investimento na melhoria do ensino fundamental. A inovação do Darcy Ribeiro foi tentar fazer essas duas coisas juntas -que funcionou muito bem enquanto o Darcy estava à frente [da idéia], mas depois aconteceu uma enorme decadência do projeto pedagógico.

Folha - A senhora acredita que a tendência natural de projetos como esse é ficarem decadentes?
Durham - Acho. São muito caros para serem mantidos.

Folha - E como a senhora vê a perspectiva dos CEUs sob uma administração Serra, se tivesse que dizer o que fazer agora, já que estão aí, construídos?
Durham - Estudaria a situação para ver se seria possível transformar os CEUs numa coisa parecida com a Escola Parque, que atenda a toda uma população dos alunos das escolas da região. É preciso aumentar o número de horas de aula nas escolas. Com teoricamente quatro, na verdade três horas de aula, não dá para as crianças aprenderem a ler. Mas isso não é a opinião do Serra, hein? É a minha. Os CEUs precisam ser transformados em alguma coisa que atenda aos estudantes depois da escola regular, para tirá-los da rua e lhes dar uma ampliação curricular -que não fique apenas em hora de aula, mas tenha teatro, cinema, música, esporte. Se veria um uso mais intenso dos CEUs para uma população mais ampla de crianças. Seria muito bom se nós déssemos período integral para todas as crianças do Brasil. Mas entre o ideal e o que é possível fazer com as verbas existentes hoje existe uma diferença bastante grande. Democratizar os CEUs. Não demoli-los nem deixar que pereçam, mas fazer com que eles rendam mais.

Folha - A senhora trata da periferia no seu livro. No caso da cidade de São Paulo, parece haver uma recorrência de voto dessa região no Partido dos Trabalhadores. E há uma tentativa de explicar isso com base na diferença entre classes sociais, com
os pobres se aproximando do PT. Como a senhora poderia explicar isso?
Durham - Há uma explicação que está mais ou menos presente em todos os meus trabalhos sobre periferia -que há um processo de integração de massas provenientes de imigração recente, que deixa resíduos não-assimilados de imigrações anteriores. Pessoas que não têm uma condição satisfatória de empregabilidade, porque não têm um mínimo de instrução formal necessária. Há um problema constante, que é o ingresso de pessoas analfabetas. Desde a década de 40, quando aumenta a migração urbana, você escolariza a população existente, mas tem um constante contingente de população com escolaridade nula ou pequena. Isso praticamente já foi resolvido, porque finalmente conseguimos, na prática, uma universalização da ida das crianças à escola. Essa população é constituída de candidatos quase certos ao desemprego. É uma população cuja integração dentro do sistema cultural, do sistema econômico, do sistema político é ainda muito parcial. Acho interessante -não quero explicar um fato pelo outro-, mas não são os bairros operários onde se concentrou a votação do PT. Mas nesses bairros onde as pessoas não chegaram a ser operários. Não é só de chegada recente, mas de resíduo. Dos que chegaram, muitos já realizaram o trajeto de integração. Mas sobram resíduos de pessoas que não mandaram os filhos para a escola, cuja família se desorganizou inteiramente, que as crianças ficaram abandonadas na rua -uma população muito difícil de ser integrada no mercado de trabalho regular. A chegada tem diminuído, não sei quanto. Mas ainda chega e constantemente.

Folha - Por que essas pessoas votam no PT? Dá para arriscar uma hipótese?
Durham - Tenho algumas hipóteses, mas faz parte da minha responsabilidade não dar palpites. Posso dizer que condições são essas, que essas condições da periferia provavelmente estão associadas a uma votação maior no PT.

Folha - Uma hipótese...
Durham - Diria que essa população é mais facilmente alcançada pela militância. Movimento dos sem-terra e dos sem-teto, que tem uma militância de esquerda muito organizada, tem uma penetração muito grande nessa camada. Tem a ver com a escolaridade e com o tipo de reivindicação. Se você é organizado para obter benefícios por um partido de militância de esquerda, a propaganda eleitoral corre por essa via.

Folha - Há um outro aspecto dessa nova imigração. Noutro trabalho, a senhora fala da total integração da imigração italiana com o que era antes a sociedade brasileira sem eles. A integração das novas imigrações internacionais para São Paulo -como bolivianos e chineses- é menor? Continuará assim?
Durham - Os chineses têm uma certa vocação para formar colônias muito fechadas. Os japoneses também tinham, mas isso em grande parte foi quebrado. Há muita diferença no problema da integração quando é uma população muito pobre com pouca instrução e quando é uma população menos pobre com mais instrução. Nas condições do Brasil logo após a escravidão, os italianos, normalmente, boa parte sabia ler e escrever. E havia a existência de certos valores culturais que, naquele momento, facilitaram essa integração e a mobilidade social.

Folha - Como?
Durham - A valorização do trabalho, a idéia de que realmente você precisa trabalhar muito, que o trabalho é aquilo que permite vencer na vida. E um projeto a longo prazo, um investimento muito grande nos filhos, que é um projeto de mais de uma geração. Boa parte dessa população, a maioria dessa população, se beneficiou diretamente da ampliação do sistema educacional. Quando você associa uma possibilidade, oferecida no mercado de trabalho, de integração, com uma possibilidade, oferecida na sociedade, de escolarização, você tem um caminho fácil de integração. Mas quando você pega bolivianos muito pobres, precisa saber, talvez tenham uma alfabetização precária em português... Se as crianças forem para escola brasileira, o processo deslancha. É um elemento muito fundamental. Boa parte da integração dos japoneses -há duas gerações era uma colônia bastante fechada- foi o grande aproveitamento que tiveram da ampliação do ensino médio e do ensino superior. Aí também ele está preso ao valor do estudo. Mas é preciso lembrar que aquela foi uma época de grande crescimento econômico no país. Uma época de estagnação econômica reduz as possibilidades. Você pode ampliar a empregabilidade dessa população, de tal forma que eles tenham condições de se inserir no mercado de trabalho. Mas uma ascensão muito rápida, como foi o caso dos italianos, depende de condições econômicas muito específicas daquele momento histórico.


RAFAEL CARIELLO
da Folha de S.Paulo

 
 
 

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