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23/07/2002 - 02h43

"Revoluções científicas nasceram de modos revolucionários de pensar"

ALESSANDRO GRECO
free-lance para a Folha

Roberto Salmeron bem que tentou ficar no Brasil, mas, nos anos 60, as circunstâncias da política nacional e os apelos da comunidade científica internacional o empurraram para fora. Hoje, aos 80 anos, quase metade dos quais no exterior, o físico brasileiro, um dos mais importantes de sua geração, é tão reverenciado na Europa e nos Estados Unidos quanto ignorado em seu país, exceção feita à comunidade acadêmica, para a qual ele é um paradigma profissional, ético e até político, num sentido do termo restrito a uma de suas áreas de interesse a educação.

Marcos Alves/imagem
O físico Roberto Salmeron na sala de sua casa, em Paris, onde vive

Para Salmeron, transmitir conhecimento é atividade tão nobre quanto trabalhar em pesquisas de ponta. É preciso ensinar ciência desde a infância, mas de modo experimental, não somente com palavras e livros. "Não conheço nenhum cientista, de nenhum país, que tenha tido um mau curso na escola", disse ele à Folha de sua casa em Paris, onde vive.

Sua preocupação com a educação não é de hoje. Em 1943, aluno de engenharia da Escola Politécnica da USP, Salmeron dava aulas de eletricidade e de magnetismo em um cursinho preparatório para faculdade. O dinheiro das aulas ajudava no sustento da família, mas sua capacidade de explicação em sala de aula tinha um potencial insuspeitado que lhe garantiria muito mais do que um extra imediato.

Taquigrafado por um aluno, o curso virou apostila e, mais tarde, um livro que se transformaria em best-seller entre estudantes. Três gerações de alunos do ensino médio foram formadas com a ajuda de "Introdução à Eletricidade e ao Magnetismo". Hoje, 60 anos depois, aquelas remotas anotações voltarão a ser consultadas no curso de ensino à distância do Instituto de Física Teórica da USP.

O caminho do exílio se insinuou no choque entre sua convicção democrática e o regime militar. Defensor da idéia de uma universidade democrática, Salmeron se demitiu da recém-inaugurada Universidade de Brasília (UnB) em 1965, um ano e meio depois da derrubada do governo civil.

A atitude de protesto contra a demissão, por razões políticas, de 222 professores o afastou da coordenação do Instituto Central de Ciência e Filosofia da UnB, onde havia aglutinado físicos da sua geração.

Persona non grata do novo regime, Salmeron viu, como tantos outros que também se insurgiram contra o governo, as portas do mundo acadêmico se fecharem diante dele.

Na época, Salmeron já era um físico de destaque internacional. Mais de dez anos antes, quando fazia seu Ph.D na Universidade de Manchester sob orientação do Nobel de Física Patrick M.S. Blackett, fora indicado para trabalhar no recém-criado laboratório Cern, uma das mecas mundiais da física de partículas.

Foi um dos primeiros pesquisadores da instituição a ter contrato vitalício. Salmeron tinha condições de pesquisa, prestígio intelectual e estabilidade econômica. Em 1963, porém, deixou tudo isso para trás para voltar ao Brasil e se associar à UnB.

Em 1966, depois de passar cinco meses desempregado, Salmeron foi chamado outra vez pelo Cern, retomando a condição de membro permanente.

A perseguição branca a que foi submetido chegou aos ouvidos do diretor-geral do Cern, o físico Victor Weisskopf. Admirador do trabalho do brasileiro, Weisskopf lhe enviou um contrato com o seguinte recado: "Você pode voltar, já está assinado por mim". Mesmo assim, ele titubeou. "Fiquei três meses com a carta na mão antes de aceitar", conta.

No Cern, trabalhou em uma das maiores empreitadas da instituição: a busca do plasma quark-glúon, a forma da matéria que, segundo a teoria atual, existiu somente nos primeiros instantes após o Big Bang e poderá ajudar os físicos a entender melhor o que aconteceu no início do Universo.

Com uma compreensível decepção temperada pela saudável teimosia, ele diz que, por enquanto, não se pode afirmar a existência do plasma. As evidências ainda são contraditórias, mas a investigação pode estar próxima de um desfecho bem-sucedido. Tudo depende do resultado de novos experimentos, que estão sendo feitos no laboratório Brookhaven, nos EUA.

A volta à Europa nos anos 60 despertou o interesse de algumas das melhores universidades do mundo. Muitas queriam tê-lo como docente. Foi convidado a se juntar às universidades Columbia (EUA), de Trieste (Itália), Zurique (Suíça) e Oxford (Inglaterra).

Em 1967, escolheu trabalhar na École Polytechnique.fr (França), um dos mais conceituados institutos do mundo. A escolha foi motivada, em parte, pela decisão de educar os filhos em um grande centro como Paris. Mas Salmeron nunca deixou de colaborar com o Cern.

Se ele não ganhou o Nobel, teve uma parcela de responsabilidade nas decisões sobre alguns vencedores. Entre 1985 e 1989, Salmeron integrou a equipe de consultores que indicava candidatos ao prêmio.

A notoriedade não apagou o entusiasmo juvenil com a ciência. Salmeron lembra por que resolveu seguir a carreira. "Compreendi a beleza da física", afirma, prestando tributo a seus professores. O prestígio também não o acomodou. Ao contrário, nunca perdeu o gosto pelo desafio, o que fica claro com a lista dos físicos que mais admira: Galileu Galilei, Isaac Newton, Albert Einstein e Michael Faraday. "Eles fizeram revoluções científicas não apenas com descobertas mas, sobretudo, porque introduziram modos revolucionários de pensar."

Os três primeiros podem ser consenso até entre leigos. Mas e Faraday? "Dos quatro, é o que mais admiro." Filho de um ferrador de cavalos, nasceu em uma família pobre na Londres do século 18. Na infância, mal tinha o que comer. Foi à escola primária só até os 11 anos, para aprender a ler e a escrever.

Não frequentou nenhuma outra e se tornou o maior físico e químico experimental de todos os tempos. "Ele é provavelmente o maior cientista experimental de todas as ciências", avalia Salmeron.

Ele nunca voltou a trabalhar no Brasil. Mas não foi por falta de reconhecimento de seus pares. "Ele está sempre disponível para ajudar as pessoas que o procuram", afirma o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, professor emérito da Unicamp. "Salmeron tem sido uma referência para os físicos brasileiros", diz o físico Carlos Henrique Brito Cruz, reitor e professor da Unicamp.

Hoje, com três filhos e oito netos, também não vê motivos para voltar a morar no país. Acredita que já não pode mais ser útil aqui. Continua, no entanto, a colaborar com vários cientistas das principais instituições brasileiras de pesquisa (USP, Unicamp, Unesp, CBPF, Uerj, UFRJ) e a discutir e escrever sobre educação universitária. Tem participado também de comitês para desenvolvimento da educação e da ciência no Brasil.

Aposentado como diretor emérito de pesquisa da Polytechnique francesa, mantém sua sala na instituição e, sempre que pode, frequenta também o Cern. Há quatro anos não trabalha mais diretamente com experimentos. Faz "somente", diz, a interpretação dos dados obtidos.

E se não fosse físico o que Salmeron faria? "Biologia, porque é a ciência que busca entender a vida, que é o que há de mais maravilhoso no Universo."


Leia mais:

  • Conheça alguns dos ídolos do físico brasileiro Roberto Salmeron

  • O plasma que veio do espaço


  • Links relacionados:
    Brookhaven National Laboratory - www.bnl.gov
    Cern - www.cern.ch
    École Polytechnique - www.polytechnique.fr
    Escola Politécnica da USP - www.poli.usp.br
    Nobel e-Museum - www.nobel.se
    The University of Manchester - www.man.ac.uk
    UnB - www.unb.br
    Unicamp - www.unicamp.br

         

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