Folha Online sinapse  
30/11/2004 - 02h50

Perfil: Cientista dos sentidos

Alexandra Ozorio de Almeida
enviada especial da Folha de S.Paulo a Recife

Cada vez menos jovem e cada vez mais cientista, Petrus Santa Cruz, 42, estava no grupo dos primeiros vencedores do Prêmio Jovem Cientista, que realizou neste ano a sua 20ª edição. Ganhador, em 1981, da premiação especial (hoje categoria estudantes), que dividiu com Francisco Carlos de Prince e Alex Vieira Pinto, Petrus por pouco não deixou de receber seu prêmio.

Na época, o então estudante militava no grupo MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro) e não sabia se deveria ou não ir a Brasília para receber um prêmio oficial, já que o país vivia sob ditadura militar. Consultou seus colegas de diretório estudantil e foi autorizado a ir, mas quase perdeu a cerimônia, ao confundir o Palácio do Planalto com o do Itamaraty, onde a neta do italiano Guglielmo Marconi (inventor do telégrafo e Nobel de Física em 1909) o aguardava para a entrega do prêmio.

Petrus ainda cursava o ciclo básico de engenharia química na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) quando criou os trabalhos premiados: um aparelho telefônico baseado na audição óssea (vibração) e, para deficientes visuais, uma chave magnética e uma bola de futebol com oscilador eletrônico. O pesquisador lamenta a falta de interesse, naquele tempo, em produzir os dispositivos em escala industrial. "Meu objetivo sempre foi conseguir soluções baratas. Não adianta criar algo que seja economicamente inviável para a população e para o empresariado", diz.

Buscar as soluções da ciência para os problemas brasileiros é o objetivo do Prêmio Jovem Cientista, organizado e patrocinado pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), pela Fundação Roberto Marinho e pelos grupos Eletrobrás e Gerdau. Cada edição tem um tema de interesse direto da população. O da primeira edição foi telecomunicações, e o prêmio principal, para formados com menos de 40 anos, foi para Henrique Sarmento Malvar, então professor da UnB, atualmente líder de um grupo de pesquisa na Microsoft, nos EUA. Em 2004, pela primeira vez todas as categorias foram vencidas por mulheres.

As 20 edições do Jovem Cientista acompanharam mudanças profundas na sociedade e na ciência brasileiras. Mas a desorientação geográfica de Petrus continua a mesma, ainda que amenizada pela tecnologia: o pesquisador carrega no carro um aparelho de GPS (sistema de posicionamento global, na sigla em inglês), que lhe ajuda a chegar ao destino escolhido.

Raio-X

Nome: Petrus D'Amorim Santa Cruz Oliveira
Idade: 42
Estado civil: namora Andrea, bióloga. Antes, entre namoro e casamento, passou mais de dez anos com Andrea, física
Filhos: nenhum, mas gostaria de tê-los. Só é "pai" da poodle Dolly, uma homenagem à ovelha clonada, sua contemporânea
Livro de cabeceira: "Catatau", de Paulo Leminski, "porque é totalmente não-linear. Ele procura respostas e é bombardeado por coisas novas"
Religião: cristão, "porque admiro Jesus Cristo, mas não acredito em Deus"

Atualmente, Petrus é professor no Departamento de Química Fundamental da universidade em que se formou, depois de ter feito seu doutoramento na França. De volta à UFPE, em 1995, montou o Laboratório de Materiais Vítreos e Nanodispositivos Fotônicos, isto é, dispositivos relacionados à luz numa escala mais que microscópica: a escala nanométrica (um fio de cabelo tem a espessura de 10 mil nanômetros, por exemplo). No laboratório, cada estudante de doutorado desenvolve uma linha de pesquisa. Apenas neste ano já foram feitos seis pedidos de patente.

Um dos projetos parece saído do filme "Viagem Insólita" ("Innerspace", 1987), de Joe Dante, em que a microcápsula pilotada por Dennis Quaid é atacada por anticorpos. O dispositivo em questão é uma sonda emissora de luz que avalia o desempenho do sistema imunológico do paciente. Ao ser inserida em uma pessoa saudável, o sistema imunológico reconhece a presença do invasor, que é fagocitado ("engolido" pelas células de defesa), deixando de emitir luz. Em um corpo doente, a nanossonda continua "brilhando", sinalizando a deficiência.

Outro nanoapetrecho é um dispositivo que acusa a presença de poluentes em água potável. O nanodispositivo é constituído por um gel superabsorvente que contém uma sonda emissora de luz. O gel "suga" os poluentes presentes na água, aumentando a concentração das substâncias no dispositivo. A luz emitida pela sonda contida no gel é alterada de acordo com o tipo de poluente presente na amostra de água, permitindo sua identificação pela análise da alteração da luz.

O mais bem-sucedido projeto, porém, é outro, que levou à incubação da primeira empresa de base nanotecnológica do Brasil, a Ponto Quântico Nanodispositivos. Lá é produzido o nanodosímetro molecular de uso pessoal, que mede a radiação UV a que são submetidos trabalhadores com alta exposição ao sol, como guardas de trânsito.

Petrus também foi o idealizador do projeto que deu origem à Renami (Rede de Nanotecnologia Molecular e de Interfaces), conta Oscar Malta, professor do Departamento de Química da UFPE e coordenador da Renami, uma das quatro redes cooperativas do programa nacional de nanociência e nanotecnologia do CNPq. As outras três redes cobrem as áreas de nanobiotecnologia, materiais nanoestruturados e nanodispositivos semicondutores. No total, são quase 500 pesquisadores em cerca de cem laboratórios espalhados pelo território nacional.

Se tantos "nanos" já parecem ficção científica, uma das linhas de pesquisa coordenadas por Petrus poderia muito bem ser o tema de um episódio do seriado "Star Trek". Até o tenente-coronel-aviador Marcos Pontes, mais conhecido como "o" astronauta brasileiro, está envolvido no projeto.

É o primeiro experimento brasileiro de nanociência a bordo de um foguete. O objetivo é determinar se a microgravidade (quase ausência de efeitos gravitacionais) afeta o processo de formação de um material composto por nanocristais de metal.

O estudo deverá ser utilizado no desenvolvimento de um novo tipo de fibra ótica. O primeiro experimento, em 2002, foi realizado a bordo de um foguete de sondagem VS-30 Órion, um veículo suborbital lançado da base de Alcântara, aproveitando os sete minutos em que a nave fica praticamente imune à gravidade. O objetivo mais ambicioso, entretanto, é que Pontes execute experimentos mais longos com nanocristais na sua futura ida à EEI (Estação Espacial Internacional).

Pontes, que já visitou o laboratório de Petrus, elogia seu foco na formação de recursos humanos na área de nanociência e nanotecnologia, que considera "de extrema importância para o futuro tecnológico do Brasil". "Paralelamente às pesquisas científicas acadêmicas, fomenta-se tecnologia pela incubação de empresas dentro da universidade. Esse tipo de proposta se alinha exatamente aos objetivos brasileiros da cooperação com a EEI: gerar bens e vantagens sociais, assim como oportunidades profissionais para jovens recém-formados", diz o astronauta. Pontes vê com entusiasmo sua participação no projeto. "Os nanossensores podem ser mais bem desenvolvidos pela utilização do ambiente de microgravidade, e a EEI é o melhor meio para esse tipo de estudo", diz.

Um hobby de Petrus é o estudo da ciência da cor. "Cor é algo subjetivo. O olho humano interpreta a forma como os fótons incidem em determinadas superfícies. Cores são apelidos que damos às sensações", explica. Um dia, enquanto ministrava um curso de pós-graduação sobre ciência da cor, Petrus se percebeu pensando na forma como um deficiente visual lidaria com a aula. Isso o levou a desenvolver um novo trabalho, em que cores são relacionadas a sons primários, criando uma nova escala —o projeto se chama Som da Cor. "Queremos dar uma idéia mais complexa do que é a sensação da cor."

No pouco tempo livre que tem, Petrus se arrisca na cozinha. Seu estilo culinário é único: "Adoro fazer bife com cebola queimada. Fica crocante, mas não faz muito sucesso", brinca. O cientista na cozinha já ganhou um segundo lugar em um concurso de receitas originais para sobremesas regionais, com o insólito "engenho gelado", que leva sorvete de cajá, semente de jerimum frita, pitanga e mel de engenho. "Não cheguei a provar", admite.

A culinária e a mania pelas cores revelam que Petrus é, no fundo, um cientista a serviço dos sentidos. Suas tecnologias ampliam a percepção humana. A pele, além do tato, ganha consciência de sua exposição ao sol. O sistema imunológico do organismo pode ser visualizado. Os olhos ganham precisão para enxergar sujeira onde parecia haver água limpa. Não por acaso ele começou desenvolvendo utensílios para cegos e surdos-mudos, diminuindo suas limitações físicas.

Faz todo o sentido.

Colaborou Salvador Nogueira, da Reportagem Local

Saiba mais:

www.cnpq.br/jovemcientista

"Prêmio Jovem Cientista: Histórias da Pesquisa no Brasil" (Fundação Roberto Marinho, organização de Carlos Vogt)

     

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