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30/11/2004 - 03h20

Gilson Schwartz: Fortaleuze

Gilson Schwartz
colunista da Folha de S.Paulo

Fortaleza hospedou no início de novembro um alentado ciclo de eventos e debates sobre arte e resistência. Nietzsche e Deleuze.

Fortaleza não é trivial. Contra tudo e todos, a cidade novamente elegeu uma mulher, carismática e performática. Pouco depois do segundo turno, um ciclo trouxe a "crême de la crême" da filosofia francesa contemporânea à capital nordestina.

Deleuze, como o discípulo Zourabichvili, que lançou em Fortaleza um glossário do filósofo, fala de uma filosofia do acontecimento. E com raiz em Nietzsche condimenta, entre outros temperos pós-modernos, a visão contemporânea do "império" desenhada no livro de mesmo nome de Antonio Negri e Michael Hardt. Tanto Deleuze como Luizianne fazem pensar em acontecimento e resistência.

Nos dois casos, como aliás em Foucault, trata-se de resistência à instituição. Como os petistas mais radicais, a crítica ao capitalismo é em primeiro lugar a resistência à governança pautada pelo capital. Arte e filosofia cumpririam a missão impossível de criar os acontecimentos da resistência à ordem. E na política?

Num momento em que meio mundo reclama da "traição" do PT a princípios revolucionários, o tema deleuziano/de Luizianne é ainda mais oportuno. Afinal, é igualmente impossível querer a revolução, a criação e a resistência enquanto se assumem compromissos de gestão, mediação, reforma.

Ou será que a revolução virá do Ceará, o atrasado cumprindo, por fim, a missão impossível de modernizar a sociedade? O PSDB já provou desse mel, no mesmo Ceará. Tasso Jereissati e Ciro Gomes (hoje no PPS) ganharam expressão nacional por terem assumido uma vanguarda contra o coronelismo nordestino.

A filosofia do acontecimento é herdeira da morte de Deus e do fim da história. Há uma resistência ao conceito, à estabilidade. Vale mais a lógica da mudança e do inusitado, do princípio do prazer e até do abandono às riquezas da confusão sensível. Mas, ao contrário da dialética (sobretudo a marxista), não aceita síntese previsível ou convergência que se anuncie.

É uma renúncia/denúncia da ordem repressora, sem chegar nunca ao outro extremo, a barbárie. O importante é "fazer a diferença", viver a cultura do devir contra a geléia geral dos desejos bovinos. Mas também não é revolução, pois essa exige muita ordem e poder de mando.

Palco de ações que parecem produzir efeitos apenas enquanto duram fora do poder estabelecido, deleuziana e de Luizianne, Fortaleza é um acontecimento no limiar possível de uma cidadania que ainda oscila entre o espetáculo e a política.

Gilson Schwartz, 44, economista e sociólogo, é professor da Escola de Comunicações e Artes da USP e diretor da Cidade do Conhecimento (www.cidade.usp.br).
E-mail: schwartz@usp.br

     

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