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30/11/2004 - 03h14

Gilberto Dimenstein: As fantasias de Kotscho

Gilberto Dimenstein
colunista da Folha de S.Paulo

O jornalista Ricardo Kotscho participou em 1975 de uma equipe de reportagem que exporia os bastidores da Corte, ao mostrar os benefícios de funcionários públicos. Então a palavra mordomia entrou e nunca mais saiu do vocabulário do brasileiro. Seria seu batismo com os bastidores da vida brasiliense. Nada comparável, em intensidade, à experiência que realizou ao se tornar secretário de Imprensa de Lula, cargo que decidiu abandonar no início deste mês.

Sua principal lição jornalística dessa experiência agora terminada: "Dizem que Brasília é uma ilha da fantasia, por causa de uma suposta vida fácil dos funcionários públicos". Essa é a imagem que ele ajudou a moldar nos tempos da abundância de recursos públicos da década de 1970, quando o país não parava de bater recordes de crescimento econômico. "Não é mais assim. Os funcionários perderam muitas de suas regalias, o salário se deteriorou. Mas a ilha da fantasia continua."

Continua, segundo ele, por outros motivos, sem relação com as regalias funcionais. "Na condição de secretário de Imprensa, eu vivia sendo questionado pelos jornalistas sobre o fundamento de rumores e de supostas notícias. Muitos dos rumores tinham fundamento, mas a maioria era fantasia, coisa inventada e propagada pelos gabinetes. Isso era o dia inteiro." Essa vocação, segundo ele, faz parte do ambiente de poder.

Sua saída do governo, diz ele, seria cercada de fantasias. "Saí porque minha mãe morreu, fiquei abalado e quis estar mais próximo de minha família. Não houve brigas nem rompimentos."

Brasília serviu também para desmontar as fantasias de Kotscho —segundo ele, o ponto mais importante de sua experiência. "Vi como é difícil mudar. Não basta a vontade nem a competência. Antes de morar aqui, não tinha idéia dessa dificuldade."

Um fato em especial lhe transmitiu essa lição. "Senti a dor de Lula na questão do salário mínimo. Eu também achava que, lá em cima, poderíamos dar um aumento e tive de me convencer de que algo que sempre achamos fundamental não pode sair tão facilmente do papel." O que mudou em sua atitude: "A partir de agora, vou ser mais compreensivo diante das limitações do poder". E, se possível, assistindo a tudo mais próximo da família e menos de Brasília.

Gilberto Dimenstein, 47, é jornalista e membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo e faz parte do board do programa de Direitos Humanos da Universidade de Columbia (EUA). Criou a ONG Cidade Escola Aprendiz, em São Paulo.
E-mail: gdimen@uol.com.br

     

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