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26/11/2002 - 02h50

Células-tronco são a nova paixão dos cientistas

MARCELO LEITE
Editor de Ciência

A pesquisa biomédica é sacudida de tempos em tempos por alguma nova moda. A da hora se chama células-tronco e foi deflagrada em 1998, quando James Thomson, da Universidade de Wisconsin (EUA), conseguiu isolar as primeiras células-tronco embrionárias, as mais versáteis que existem —tanto que já se pensa em usá-las para tratar problemas tão diversos quanto diabetes, mal de Parkinson e queimaduras. Mas é preciso ir devagar com o andor, porque há muitos obstáculos no caminho dessa biotecnologia, e a controvérsia ética sobre a destruição de embriões para obtê-las é só o mais visível deles.

O nome dessas células é ilustrativo: partindo delas, podem-se obter várias outras categorias de célula, como os ramos de uma árvore saem de seu tronco. É o processo da diferenciação, pelo qual surgem os mais de mil tipos celulares do corpo humano, a partir de um único zigoto (a primeira célula de um indivíduo, fruto da união do óvulo com o espermatozóide).

Para complicar um pouco as coisas, existem diferentes tipos de células-tronco. Num organismo adulto, por exemplo, há células-tronco do sangue, dos ossos, da pele, do cérebro e assim por diante. Cada tecido do corpo tem um estoque de células precursoras, das quais podem ser produzidas células diferenciadas, como glóbulos vermelhos ou neurônios.

A diferença mais fundamental, porém, é a que separa as células-tronco embrionárias dessas células precursoras do organismo já desenvolvido. São chamadas de células-tronco "adultas", embora alguns cientistas prefiram se referir a elas como células-tronco pós-natais, pois estão presentes também em recém-nascidos e no cordão umbilical.

As células-tronco embrionárias têm sobre as pós-natais a vantagem de serem pluripotentes —podem dar origem a qualquer célula humana (com exceção da placenta). São obtidas de um nó de 30 células que se forma no interior do blastocisto, fase anterior à implantação no útero em que o embrião de três a cinco dias tem formato esférico e cerca de 150 células no total. Extraída a massa interior, ela pode ser cultivada no laboratório e dar início a diferentes linhagens, pois células-tronco embrionárias têm a capacidade de se multiplicar indefinidamente.

Adicionando às culturas determinadas substâncias, os cientistas podem em certa medida "guiar" o processo de diferenciação, obtendo linhagens de células muito parecidas com neurônios e ilhotas de células de pâncreas, por exemplo. A idéia, que já vem sendo testada com algum sucesso em camundongos, é produzir quantidades suficientes de células para substituir aquelas ausentes ou danificadas em locais muito específicos do corpo, como nas doenças do tipo do mal de Parkinson ou do diabetes.

DIFERENCIAÇÃO DAS CÉLULA-TRONCO
Arte/Folha Online

Obviamente, quem é contrário à utilização de embriões humanos para pesquisa —por motivos religiosos, éticos ou jurídicos— não aceita esse tipo de pesquisa, pois ela implica destruir os blastocistos. No Brasil, isso foi proibido pela Lei de Biossegurança, de 1995 —anterior portanto à inovação de Thomson—, e já há cientistas defendendo sua reformulação. O Reino Unido é um dos poucos países que já dispõem de legislação autorizando explicitamente esse emprego de embriões, até o limite de 14 dias.

Nos EUA, o governo conservador do presidente republicano George W. Bush decidiu permitir o uso de verbas federais para pesquisa apenas com as células-tronco embrionárias que já estavam disponíveis até 9 de agosto de 2001, desde que os embriões destruídos tivessem sido criados para fins reprodutivos e não fossem mais necessários para esses fins.

Os adversários desse tipo de pesquisa argumentam que células-tronco pós-natais ("adultas") também podem ser usadas para o desenvolvimento de terapias, como a que curou lesões no coração em maio deste ano na Alemanha. Citam ainda pesquisas indicando processos de transdiferenciação, quer dizer, de células-tronco de um determinado tecido (como sangue) que se transformam em células de outro (como neurônios). Mas há muitas dúvidas sobre esses trabalhos, pois surgiram indícios de que, em lugar de uma diferenciação, o que pode ter ocorrido é uma fusão de células-tronco de um tecido com células já diferenciadas do outro.

Além disso, há quem veja riscos potenciais no fato de células-tronco serem cultivadas sobre um tapete de células da pele de embriões de camundongos. Seria preciso excluir a possibilidade de que esse contato transmita vírus desconhecidos para o receptor humano, por exemplo.

Há também inquietação com a capacidade de multiplicação e locomoção das células-tronco, propriedade que partilham com células tumorais. Injetadas em cobaias, as embrionárias podem induzir tumores benignos conhecidos como teratomas, com vários tipos de tecido em seu interior. Isso para não falar da idéia polêmica de produzir embriões por clonagem empregando células do próprio paciente (ou "transferência nuclear de célula somática"), a mesma técnica que criou a ovelha Dolly. Ela serviria para reduzir a rejeição, pois o doente receberia células com os seus próprios genes.

Em resumo, ainda é cedo para saber se a moda das células-tronco veio para ficar. Por ora, elas se parecem mais com idéias extravagantes dos estilistas biomédicos, que não enfrentaram ainda o teste da passarela clínica.

Marcelo Leite, 45, é jornalista. Frequentou no final de outubro, na Universidade de Maryland (EUA), seminário de três dias sobre células-tronco com uma bolsa do Centro Knight para Jornalismo Especializado (www.knightcenter.umd.edu).

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