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26/11/2002 - 02h59

Felicidade - modos de usar

HELOÍSA HELVÉCIA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Sem medo de ser piegas, a campanha de Lula à Presidência explorou o desejo comum de ser feliz, pretensão maior e mais óbvia de qualquer um. Com a vitória, entram em pauta o otimismo e os alertas para o risco de frustração coletiva. Suponha que as promessas feitas sejam realizáveis e que, em quatro anos, o crescimento do país dê um salto: qual será o efeito disso sobre a 'felicidade interna bruta'?

Fotos Fabiano Cerchiari/FI
'Aproveitar não só os momentos bons como os ruins que a vida nos dá', Johnny Bozza, 20, estudante de administração
Pesquisas cruzando a performance econômica dos países e os sentimentos dos seus habitantes mostram que a "felicidade objetiva" (medida em índices de nutrição, saúde, renda per capita, educação etc.) tem impacto muito fraco sobre a felicidade ligada à percepção interna, ao julgamento que a pessoa faz de própria vida (imensurável). Em países muito pobres, o crescimento econômico melhora essa percepção, mas, nos lugares com nível de renda em torno de US$ 10 mil anuais per capita, mais dinheiro não traz estados mentais e emocionais mais agradáveis. No Brasil, onde a renda é bem mais baixa que esse valor, a melhora da situação econômica teria, em tese, algum impacto sobre a felicidade objetiva da população. Os depoimentos das pessoas que aparecem na reportagem, no entantol, não mencionam dinheiro.

'É fazer realmente o que eu quero da vida', Fábio Makhoul, 37, advogado
Ainda que exista maior proporção de pessoas que se consideram felizes entre os mais ricos, o aumento da renda pessoal só afeta a experiência interna dos que estão nas faixas sociais baixas. A conclusão reforça o que o bom senso popular vive repetindo: dinheiro não traz felicidade para quem já tem dinheiro suficiente.

A relação entre indicadores objetivos de bem-estar e satisfação subjetiva é uma das preocupações do livro "Felicidade", de Eduardo Giannetti, recém-lançado (leia resenha à página 15). Inspirado na prática dos pensadores dos séculos 17 e 18, o economista adota o formato de diálogo para investigar "o que deu errado" no projeto iluminista. A pergunta é: por que os avanços científicos, materiais e tecnológicos dos últimos dois séculos não resultaram em aumento de realização existencial humana?

'Felicidade é ver todo mundo de bem com a vida', Cristina S. da Paixão, 25, doceira
O pensamento majoritário europeu da chamada era da razão apostava na dominação da natureza para alcançar bem-estar. Os iluministas imaginaram não o conflito, mas o elo direto entre progresso e felicidade. O livro analisa os custos do processo civilizatório, entre eles a constante ameaça de desastre ecológico e uma espécie de crise de "ecologia psíquica", ou seja, a perda da vitalidade instintiva, da alegria espontânea de existir. Embora seja uma discussão filosófica que não desce a aspectos conjunturais, "Felicidade" esconde uma mensagem otimista para o Brasil, segundo o autor. Já que ricos fracassaram na conquista de bem-estar, os países pobres poderiam evitar a cópia dos projetos de desenvolvimento pautados só na exploração radical da natureza e no ganho econômico.

'É ajudar a humanidade a crescer', Silvio Batusanschi, 55, sociólogo
"Cada cultura incorpora um sonho de felicidade. Se o Lula puder atender de forma responsável a demandas sociais como educação, saneamento, saúde etc., é possível que o Brasil, com sua herança pré-moderna de passado indígena e influência africana, encontre um caminho próprio, que preserve a exuberância, a subjetividade, a alegria", afirma Giannetti. Só que, enquanto o país não resolver a base da vida material, ficará escravizado a esses valores econômicos.

A dimensão econômica de busca de bem-estar prende as pessoas a um círculo chamado no livro de "corrida armamentista do consumo". Em vez de colher os frutos espirituais de suas conquistas materiais, o sujeito que já tem o necessário passa a se preocupar com a sua renda relativa e a se comparar aos outros. O poder do dinheiro não está mais ligado ao conforto que traz, mas à falta relativa de dinheiro no bolso dos outros.

'Meus filhos. Minha mãe. Felicidade é viver', Cristiane Resende, 33, jardineira
É evidente que os holofotes da mídia sobre os mais afortunados estimulam a neurose comparativa e amplificam as aspirações ilusórias. Os mecanismos da publicidade, em particular, acabam responsabilizados por todo esse processo, mas o publicitário Ricardo Guimarães, presidente da Thymus Branding, lembra que a publicidade é só um alto-falante dos desejos em voga: "Ela bebe nas pesquisas de mercado, reflete os valores das pessoas. É conservadora, não é ética em si e não cria nada, não tem papel nem intenção de transformação. Pode até acelerar alguns processos, torná-los crônicos, mas o que pode mesmo é fazer a sociedade se enfrentar nos seus desejos, nobres ou não".

'É estar com a minha esposa e meu cachorro em um dia bonito no parque', Gustavo Tramula, 29, contabilista
Guimarães acha, entretanto, que é "mais honesto oferecer um cabelo bonito que oferecer felicidade nesse cabelo". Conhecido por usar mulheres reais em campanhas de cosméticos, no lugar dos usuais modelos de beleza inatingível, ele conta que o grande desafio para quebrar esse tabu foi reverter o desejo de ilusão das consumidoras. "O anunciante e a agência não queriam enganar ninguém, mas a consumidora, no início das pesquisas, não queria enfrentar a verdade de que um cosmético não traz aparência de 20 anos."

'Felicidade é poder ser autêntica', Ana Julia Oliveira, 21, estudante
Comerciais infantilizam consumidores, mas alguns já atendem às cobranças crescentes por uma posição social mais responsável das empresas. Segundo Guimarães, a atual velocidade das informações torna a vida mais complicada para quem pretende explorar a desinformação e a manipulação. É como se a sociedade em tempo real exigisse também o "valor real" das coisas: "Transparência é a característica do novo cenário. A imagem do produto ou da empresa tem de estar muito próxima da sua verdadeira identidade". Mas o publicitário reforça que, enquanto a sociedade achar que felicidade é um carro zero, o anúncio vai espelhar isso.

'É estar bem comigo mesma', Vanessa Queiroz, 26, designer
A competição por bens posicionais —aqueles que posicionam o consumidor na sociedade— traz frustração permanente, explica o livro de Giannetti: "Os apetites se estendem ao infinito e a escassez está sendo sempre recriada. A moeda escassa nesse jogo de soma zero é a atenção respeitosa, a disposição favorável e o afeto alheios". É o que o filósofo alemão Hegel (1770-1831) chamou de "desejo de reconhecimento". A vontade de possuir coisas não vem mais do prazer e do conforto que proporcionam, mas da necessidade de ser amado, respeitado e reconhecido pelos outros como alguém que tem valor —um valor emprestado do objeto.

'É poder estar no parque. É andar de bicicleta', Walnei de Camargo, 40, aposentado
Esse e outros mecanismos dos desejos de consumo são analisados também no livro "A Filosofia e a Felicidade" (Martins Fontes, 274 págs., R$ 25,40), do filósofo francês Philippe van den Bosch. Em um passeio didático pelas correntes de pensamento, ele tenta responder à pergunta "como viver para ser feliz?".

Desejar menos e gastar menos é a resposta de um público crescente, interessado em uma vida mais satisfatória, distante da corrida atrás de status mas também daquele retiro romântico em comunidades. Nessa alternativa à roda do trabalhar-consumir, são eliminados os excessos de posses e atividades que produzam cansaço extremo ou sejam incompatíveis com valores ecológicos e éticos.

'Ter um mundo melhor, com menos poluição, menos violência, mais árvores...', Natanael Barbosa dos Santos, 11, estudante
O livro "Choosing Simplicity" ("Escolhendo Simplicidade", www.simpleliving.net/resources) mostra o que pensam e como vivem esses pós-yuppies minimalistas, muitos deles instalados em metrópoles. Baseado num estudo de três anos (de 1995 a 97) envolvendo 211 pessoas de 40 Estados norte-americanos e oito países, o livro apresenta uma diversidade de soluções que simplificaram as vidas de pessoas de diferentes níveis sociais e ocupações. A autora do livro e da pesquisa, Linda Breen Pierce, é uma advogada americana que trocou dez anos de carreira pela teoria e a prática da vida simples.

'Feclicidade envolve paz, amor, harmonia e festas', Dione Lima, 33, agente de reservas
Militante do movimento "Simplicidade Voluntária", Pierce declara que a rejeição ao prestígio social e ao acúmulo material como objetivos máximos da vida vem crescendo nos Estados Unidos. "Depois dos eventos trágicos de 11 de setembro, houve um notável aumento nos acessos aos sites dos movimentos e um crescimento generalizado do interesse pelo assunto. O choque leva as pessoas a reavaliar suas vidas e a perceber que importante não é a fortuna, o poder e o status, mas os relacionamentos, os laços comunitários, o significado e o propósito da vida."

'É saber viver o seu dia. É ser legal com os outros e fazer as pessoas rirem', Thaisa Rodrigues Tarante, 16, estudante
Não é fácil chegar à simplicidade: "Somos programados a querer sempre mais, trabalhamos em ocupações estressantes e nos voltamos às coisas materiais para compensar o estresse e a insatisfação com nossas vidas. É um ciclo difícil de ser quebrado", diz Linda Pierce, e manda o recado: "Fico triste ao pensar que tantas outras pessoas em outros países aspiram viver no chamado sonho americano. Se simplesmente soubessem como é insatisfatório trabalhar e consumir, neglicenciando os aspectos mais emocionantes da vida...".


'Sol, luz, mar, bebês e chachorros', Thatiana Sé Barbosa, 25, advogada
Esse "novo" estilo de vida, que valoriza as coisas fáceis de obter, como a alimentação frugal, lembra muito as idéias do filósofo grego Epicuro (341-279 a.C.) , segundo o qual o controle dos desejos supérfluos é essencial à felicidade. Sua "Carta Sobre a Felicidade" (Editora Unesp, 51 págs., R$ 5) pode ser uma leitura inspiradora, nesta fase de esperanças inflacionadas.

Felicidade é o inverso de expectativa, para a analista junguiana Denise Ramos, que estuda o bom humor e coordena o curso de pós-graduação em psicologia clínica da PUC-SP. "É fundamental planejar coisas boas para a vida, mas as esperanças trabalham contra", diz.

'Felicidade não é algo contínuo, são momentos felizes', Thomas Mielenhausen, 58, engenheiro
Na visão do francês André Comte-Sponville, representante dos novos filósofos bastante influenciado por tradições orientais como hinduísmo e budismo, a esperança é a pior forma de ignorância, e a felicidade está na sabedoria de não esperar nada. Quem quiser conhecer "o caminho do desespero" que ele propõe para a busca da felicidade deve ler "A Felicidade, Desesperadamente" (Martins Fontes, 140 págs., R$ 13,50), que reproduz uma palestra a um público leigo.

Na tese de Comte-Sponville, a palavra desespero é usada num sentido diferente do habitual. Não significa sofrimento ou infelicidade, mas designa simplesmente ausência de esperança. "Esperar é um desejo que se refere ao que não temos, que ignoramos se foi ou será satisfeito, cuja satisfação não depende de nós: esperar é desejar sem gozar, sem saber, sem poder", define.

'É passear no Shopping Interlagos e ir ao cinema', Kelly de Sousa, 18, estudante
Parece sombrio, mas é nada perto de "A Arte de Ser Feliz" (Martins Fontes, 138 págs., R$ 12,50), um conjunto de máximas do alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), considerado um representante da corrente pessimista. Apesar do título, o texto contido nesse livrinho oferece esforços para que o homem alcance apenas um estado relativamente menos doloroso, já que felicidade completa e positiva é impossível, para o filósofo: "Todos viemos ao mundo cheios de pretensões de felicidade e prazer, e conservamos a insensata esperança de fazê-las valer, até que o destino nos aferra bruscamente e nos mostra que nada é nosso, mas tudo é dele".

A idéia da felicidade é desesperadora também para o escritor francês Pascal Bruckner, mas não no sentido neutro de Comte-Sponville. Em "A Euforia Perpétua" (Difel Brasil, 240 págs., R$ 34), o ensaísta disserta sobre a "obrigação de ser feliz" na atual sociedade hedonista. Bruckner sustenta que o bem-estar foi transformado em signo de status e que as pessoas tentam comprar a fugaz felicidade como se fosse ela um imóvel.

Conforme esse raciocínio, a busca obsessiva de um objeto efêmero funciona como fonte de angústia, fazendo o homem sofrer duplamente: por ser da sua condição e por não poder sofrer. "Felicidade é uma palavra velha, prostituída, adulterada, tão envenenada que gostaríamos de bani-la de todas as línguas", escreve Bruckner. Seu livro mostra como o direito à felicidade, palavra de ordem emancipadora do iluminismo, acabou sendo tomado como dever e dogma. No prefácio, o autor se justifica: "Não se trata de ser contra a felicidade, mas, sim, contra a transformação desse sentimento frágil em verdadeiro entorpecente coletivo ao qual todos devem se entregar, em suas modalidades químicas, espirituais, psicológicas, informáticas, religiosas".

Mesmo sendo muito mais otimista em relação aos ganhos de bem-estar na sociedade moderna, o médico e psicoterapeuta João Augusto Figueiró, do Hospital das Clínicas de São Paulo, concorda que a pressão social pela euforia vem distorcendo a busca de felicidade: "A cultura narcísica impõe a ostentação carnavalesca e histérica da alegria, mesmo que falsa. Não estar feliz é o fim. É preciso ser não apenas rico mas também jovem e feliz o tempo inteiro. Daí o grande mercado da auto-ajuda, das drogas, cirurgias plásticas e academias", diz.

O que alimenta essa indústria é a noção equivocada de felicidade como "coleção de momentos de prazer", na avaliação do psiquiatra brasileiro Roberto Shinyashiki, segundo quem o erro não está em querer ser feliz, mas em tentar no lugar errado e de maneira massificada. "O principal é encontrar o seu eu interior e achar o sentido da vida —seja ganhar rios de dinheiro ou trabalhar no terceiro setor, não importa", diz ele, autor do best-seller "O Sucesso É Ser Feliz". É um livro de auto-ajuda, sim, e Shinyashiki não vê problema nisso, já que "Dalai Lama também entra no rótulo e até Freud e Jung foram campeões de vendas". Auto-ajuda, diz o psiquiatra, só é problema quando padroniza respostas e conceitos como felicidade ou sucesso. "Aí, mais atrapalha do que convida à reflexão."

O conceito de felicidade sofreu uma "medicalização", conforme o psicoterapeuta Figueiró. A preocupação com o corpo perfeito e a alimentação ideal toma o lugar de qualquer reflexão mais ampla sobre bem-estar. "A composição dessa sensação é multideterminada, envolve desde a auto-responsabilidade no condicionamento físico até a quantidade de área verde e o sistema político de onde a pessoa vive", afirma.

Não é à toa que se confunde felicidade com saúde. Os primeiros programas de promoção de bem-estar chegaram às empresas brasileiras nos anos 80, por meio da medicina ocupacional e com o objetivo de reverter as perdas de produtividade e os custos com doenças de funcionários. O conceito evolui devagar no sentido de envolver outras áreas, que não a médica, e outros funcionários, que não os mais bem posicionados na hierarquia das corporações.

Figueiró aposta que a globalização fará chegar ao Brasil campanhas pró-bem-estar cada vez mais sofisticadas no formato e no alcance, custeadas por companhias de seguros e empresas multinacionais. Tudo para quem tem emprego, claro. "Escreve-se muito pouco hoje sobre a promoção da felicidade. Há um preconceito, como se fosse um assunto piegas e de pouco valor para o estudo científico. Faltam líderes naturais para a questão: há alguns na área religiosa, mas ninguém no campo pragmático", diz.

Não há mesmo chance de surgir um ministério da felicidade.O objeto preferido da tradição filosófica é impreciso e se rebela contra tentativas de sistematização. Santo Agostinho (354-430) deu-se ao trabalho de contar 289 opiniões diferentes sobre o assunto; o século 18 dedicou uns 50 tratados ao tema.

"Felicidade é assunto sobre o qual todo ser humano é especialista e ninguém é especialista, tal a complexidade e interdisiciplinaridade que envolve", diz o economista Eduardo Giannetti. Por isso, no seu livro, a troca de idéias entre amigos de perfis distintos é o pretexto para uma discussão em que as vozes se alternam, sem que uma verdade se imponha. Como Epicuro, Giannetti considera a amizade superior ao amor e vê no diálogo filosófico entre amigos "uma boa modalidade de felicidade".

Colaborou Camila Prado, free-lance para a Folha de S.Paulo

Leia mais:
- Felicidade em quatro tempos
- Filosofia e felicidade ao alcance do leitor
- Felicidade para gregos e troianos
- Leia prólogo do livro "Felicidade"

Links relacionados:
- Companhia das Letras: www.companhiadasletras.com.br
- Livraria Martins Fontes: www.martinsfontes.com
- The Simple Living Network: www.simpleliving.net/resources
- Editora da Unesp: www.editora.unesp.br

     

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