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17/12/2002 - 02h39

O diretor dos excluídos

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Alexandre Schneider/Folha Imagem
Braz Rodrigues Nogueira em sala de aula da escola que dirige, em Heliópolis, na zona sul de São Paulo
A Escola Municipal de Ensino Fundamental Presidente Campos Salles, em Heliópolis, bairro da zona sul de São Paulo, é uma exceção. Localizada numa região de periferia, assolada pela pobreza (é a maior favela de São Paulo, com aproximadamente 90 mil habitantes— e pela violência —a disputa por pontos de tráfico de drogas levou a uma intervenção da polícia durante seis meses em 2000—, não obedece à regra de repetir dentro de seus muros os problemas da comunidade que a cerca. Pelo contrário, é um dos principais agentes de mudança em Heliópolis. E a mudança, ou grande parte dela, tem um rosto: Braz Rodrigues Nogueira, 50, diretor da escola.

Nascido em Córrego das Cruzes, interior de São Paulo, Braz foi criado à base de desafios: andava 12 quilômetros para poder frequentar a escola, acordando às quatro da manhã para estar na aula às oito. Na faculdade, não era raro jantar apenas um saco de pipoca, na saída do trabalho, antes de assistir às aulas à noite.

Com a persistência adquirida na infância, Nogueira fez da escola pública que dirige, com 1.500 alunos, uma referência internacional na integração escola-comunidade e no ensino de direitos humanos.

Em 2000, a Campos Salles foi escolhida para receber a visita do chefe do Conselho do Departamento de Educação dos EUA, Terry Peterson. No ano passado, a escola participou da oficina "Novas Tecnologias em Comunicação e Educação", em que um pesquisador do prestigiado MIT (Massachusetts Institute of Technology, dos EUA) ensinou os alunos a usar novas tecnologias, como a robótica e a câmera de vídeo digital, para inventar equipamentos e construir idéias relevantes para seu dia-a-dia.

Durante a crise energética de 2001, alunos fizeram um documentário em vídeo e produziram folhetos sobre o perigo das ligações clandestinas e sobre o que fazer para ter energia com mais segurança; e a escola foi escolhida para o lançamento oficial do projeto da prefeitura Escola Aberta, no ano passado, por já oferecer seu espaço desde 1996.

Em 1995, quando passou em concurso da prefeitura para diretor de escola, Nogueira pôde fazer uma lista das escolas nas quais gostaria de trabalhar, devido à sua boa colocação. Das 14 que selecionou, a E.M.E.F. Presidente Campos Salles era a primeira. A escolha teve dois motivos: na época, morava perto e podia ir a pé ao trabalho; e, ainda como professor, havia percebido que tinha mais chance de realização pessoal nas comunidades de periferia. "Não é por ter mais trabalho a ser feito, a questão é de não negar a minha origem e saber que, se as pessoas têm oportunidade, têm mais condição de desenvolver suas capacidades, de se encaminhar na vida. "

Quatro meses antes de assumir o cargo, Nogueira passou a frequentar a escola, sem dizer quem era. Com outros moradores, pulava o muro nos finais de semana para jogar bola, como pretexto para estabelecer contato com a comunidade. Em 21 de novembro de 1995, chegou oficialmente como diretor, para o espanto daqueles que já o conheciam. Naquele dia, em que enfrentou uma chuva de demandas e percebeu a luta dos diferentes grupos pelo seu apoio, colocou as mãos na cabeça e pensou: "Meu Deus, o que foi que eu fiz?".

O problema, diz, é que o papel do diretor já está construído historicamente. A liderança, defende Nogueira, está em constante deslocamento. Em um momento, o líder pode ser o diretor, um aluno, um pai ou um professor. Como exemplo, lembra um boato de toque de recolher na região há quatro anos. "Várias escolas haviam fechado, menos a nossa. Uma noite, alunos fizeram uma manifestação, e aquilo me irritou tanto que eu mandei descer todas as salas para o pátio e disse que não iríamos fechar. Voltei para a minha sala com vontade de desaparecer. Entrou, então, um grupo de seis alunos, e um deles me disse para não ficar desanimado, que eles não deixariam morrer o projeto da escola. Naquele momento, a liderança da escola foi aquele aluno. Fui embora para casa renovado", conta.

Ao começar o seu trabalho de diretor, Nogueira procurou aproximar-se dos professores, dos alunos e da equipe técnica. Foram feitas reuniões com os pais sobre educação e cidadania. "Mostrávamos a escola por dentro, do jeito que ela é, com todos os problemas e contradições. O objetivo era levar o pai a perceber que ele é responsável, que também é problema dele."

Ao mesmo tempo, os professores eram levados a conhecer a região. Nogueira lembra que, ao visitar um barraco construído sobre palafitas à margem de um córrego, uma menina ficou feliz ao identificar sua professora, conduzindo-a orgulhosamente por sua casa. De volta à escola, a professora chorou, chocada com as condições precárias em que viviam seus alunos.

A comunidade também foi envolvida. "Os problemas do entorno também são da escola. Se os direitos das pessoas que vivem ao redor do colégio não são atendidos, está comprometido o direito à educação."

O cerne do projeto é o Conselho da Escola, formado por 28 membros eleitos diretamente: são sete professores, sete membros do apoio (agentes escolares, vigias), sete alunos e sete pais. Qualquer pessoa pode assistir às reuniões. Por causa da legislação que regulamenta o funcionamento das escolas municipais, são poucas as decisões que o conselho pode tomar. "Considero o Conselho a maior autoridade da escola. O diretor, que deixa de ser o 'salvador da pátria', deve executar as decisões tomadas nele", diz. Nogueira gostaria que o órgão pudesse interferir até na escolha dos professores.

Arquivo pessoal
O diretor Nogueira, em campeonato de caratê dos alunos da Campos Salles
A partir do Conselho, foram formadas comissões, sendo a mais importante a de Relação Escola-Comunidade, responsável por resolver problemas de comportamento. Se um aluno ameaça um professor, a comissão vai à casa do estudante discutir a questão.

No início, Nogueira fazia esse trabalho sozinho, e hoje ri ao lembrar que era visto como louco. "Vou a qualquer lugar, à 'boca', aonde precisar. Não tenho medo do ser humano e não sou moralista. Antes de o cara ser assassino, ele é gente. Esses meninos são bons, não são bandidos. Matam, sim, mas não são bandidos. Não podemos responsabilizar a pessoa individualmente pelo que ela faz. Todo o coletivo é responsável", defende.

Em relação ao tráfico de drogas, Nogueira se diz conformado. "Tem muita gente vendendo droga na região. Não dá para tirá-los da escola. Tenho de enfrentá-los —mas isso, para mim, é sinal de amor. Só que os verdadeiros traficantes não estão na favela, estão bem longe de nós, em outros lugares."

Em 1999, uma das alunas da Campos Salles foi morta com cinco tiros logo depois de sair da escola. Descrita como alegre e sociável, Leonarda estava envolvida com o tráfico de drogas. Ao ver o corpo da aluna no IML, Nogueira lembra de ter se sentido omisso. Com integrantes da escola, decidiu organizar uma caminhada pela paz na região. Durante quatro meses, tentou mobilizar a comunidade para superar o medo. Entre as escolas da região, apenas duas decidiram participar, mas uma desistiu na véspera. Mesmo assim, cerca de 2.000 pessoas foram ao evento, que atravessou a favela e marcou a história —nascia a "Marcha Pela Paz". Em 2002, ocorreu a quarta edição, que contou com a participação de 19 escolas e 4.000 pessoas.

Em sua visão do que deveria ser a educação no país, Nogueira não poupa críticas aos professores. Ele fica "louco" quando ouve algum deles dizer: "Fazemos tanto por eles e ninguém reconhece". "Não aguento ouvir isso. Escola só pode dar certo quando é feita com a comunidade, e não em nome dela."

Os professores, reclama o diretor, conquistaram "pseudodireitos, como o de tirar folgas abonadas, justificadas, não justificadas". "Os estudantes acabam sem rotina, mas ninguém luta por isso. Os professores deveriam lutar para trabalhar em apenas uma escola, ter um salário digno, ter tempo para atender os alunos, estudar, participar da vida da comunidade", diz.

Por causa da falta de professor, Nogueira diz que, em alguns dias, precisa dispensar cinco ou mais salas. Esse foi o principal motivo que o levou a colocar sua filha única, Marília, 12, em uma escola particular. "Fico muito triste, mas não tenho escolha. Como profissional, luto para que a escola pública tenha qualidade, mas isso ainda não existe. A mudança da escola só ocorrerá quando se tornar uma reivindicação social."

Marília é filha de seu terceiro casamento, com a também diretora de escola pública Arlete Persoli, que já dura 15 anos. Viúvo duas vezes, Nogueira é ex-seminarista. Estudou teologia por quase três anos e formou-se em filosofia nas Faculdades Associadas do Ipiranga. "Na aula, de cada dez palavras, não entendia quatro. Pegava um texto de um filósofo e demorava oito horas em uma página. Parecia outra língua."

Formado, foi morar numa república com amigos. Sem dinheiro, começou a procurar emprego. "Foi um momento muito conturbado da vida. A minha família não tinha como ajudar." Acabou pegando 12 aulas de ensino religioso em um colégio de freiras, depois deu aula de filosofia em uma escola do Estado.

Em 2001, Nogueira foi convidado para integrar a administração de Marta Suplicy na Secretaria Municipal de Educação e trabalhar no Escola Projeto Vida (cuja proposta é parecida com a que desenvolve na Campos Salles). Chegou "entusiasmado, achando que ia interagir com a cidade inteira". Ficou apenas 13 meses. "Percebi que represento a sociedade civil, não consigo trabalhar como governo, nem do meu partido."

Mesmo afastado das salas de aula, Nogueira continua a ministrar oficinas, especialmente de direitos humanos, e ensina caratê todos os sábados na escola —é faixa preta há 26 anos. "Parece cafona, mas meu sonho é derrubar os muros de todas as escolas, para que quem trabalha lá possa estar sereno e tranquilo, sabendo que é parte de uma comunidade maior."

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