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17/12/2002 - 02h40

O calor do El Niño

CLAUDIO ANGELO
Editor-assistente de Ciência, da Folha de S.Paulo

Reprodução
Ninguém sabe exatamente por quê. Mas, de tempos em tempos, a temperatura da água na região tropical do oceano Pacífico sobe mais do que o normal. O resultado disso você vê nos noticiários: secas no Nordeste e na Índia, tempestades no sul do país e na costa Oeste dos EUA, Amazônia em chamas. O El Niño está de volta para fazer travessuras com o clima no planeta

O fenômeno foi batizado pelos pescadores da costa peruana (a primeira menção científica foi feita em 1891 por Luis Carranza, então presidente da Sociedade Geográfica de Lima). Acostumados às águas geladas do Pacífico, os pescadores percebiam que uma corrente quente que aparecia na região anualmente tinha temperaturas muito mais altas em certas épocas e durava um ano ou dois.

Quando isso acontecia, o litoral desértico virava um oásis, com chuvas abundantes e, não raro, inundações. Como as águas quentes eram percebidas geralmente no mês de dezembro, os peruanos chamaram essa corrente de El Niño, ou Menino Jesus.

Os cientistas preferem outro nome. Como o El Niño compreende uma série de mudanças na interação entre oceano e atmosfera, como o virtual desligamento dos ventos alísios (que sopram de leste para oeste), o pacote de fenômenos é chamado por eles de Enos, ou El Niño-Oscilação Sul (Enso, em inglês). Sua contraparte, o resfriamento anormal da água do Pacífico, é chamada de La Niña ou El Viejo. Ambas as fases do Enos se alternam em intervalos que vão de três a sete anos, embora a distância entre um evento e o seguinte possa variar de um a dez anos, com um período de condições normais no meio. "O que acontece é que os fenômenos não são regulares. Essas incertezas tornam o El Niño difícil de prever", afirma o climatologista Carlos Nobre, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), em Cachoeira Paulista, interior de São Paulo.

Arte/Folha Online

Para entender por que um fenômeno aparentemente tão simples —o mero aquecimento na superfície da água— tem um alcance tão grande, é preciso levar em conta o jogo intrincado entre o mar e a atmosfera. O pesquisador Gilvan Sampaio, também do Inpe, compara o Pacífico a uma piscina com um grande ventilador na borda num dia ensolarado. Em condições normais, o vento empurra a água (no caso, de leste para oeste), manten-do-a mais quente no lado oposto e criando um desnível entre as duas margens.

A diferença de nível chega a 60 cm, e a de temperatura, a 8oC. Essa água quente evapora, formando nuvens de chuva. Daí o Pacífico ser mais úmido na região oeste. À subida do ar quente e úmido na borda oeste corresponde a descida do ar no outro lado, por um mecanismo de compensação conhecido como convecção. Se os ventos na baixa atmosfera são de leste para oeste, em altitudes acima de 15 quilômetros eles carregam ar no sentido contrário. Forma-se o que os meteorologistas chamam de célula de circulação de Walker, um padrão de circulação descoberto nos anos 20 por Gilbert Walker, um dos pioneiros do estudo científico do El Niño.

Só que de tempos em tempos o ventilador do Pacífico perde potência. O resultado é que o sol passa a esquentar toda a piscina por igual. As células de Walter são interrompidas, e o ar quente e úmido que subia no oeste passa a subir no meio do oceano.

O padrão de ventos se inverte em algumas regiões: na superfície, eles passam a soprar de oeste para leste. O resultado é que a região da Indonésia fica mais seca e a costa da América do Sul, chuvosa. Como a atmosfera de todo o planeta é uma só, o desequilíbrio no Pacífico acaba afetando todo o continente americano, a Ásia e a África. A intensidade da mudança depende do quanto a superfície do mar esquenta.

Neste ano, o aquecimento está em 2oC acima do normal, o que caracteriza um El Niño gentil. Em 1997/98, um dos Niños mais fortes dos últimos tempos, a temperatura ficou 5oC mais alta na costa do Peru.

O real impacto do fenômeno começa a ser percebido de fevereiro a maio. Mas neste ano ele já começou a se manifestar, como nos incêndios florestais no Amapá. Segundo Nobre, a situação é especialmente preocupante no Nordeste, que já está passando por uma estiagem —nada a ver com o Enos— e que deve ficar mais seco justamente no verão, época das chuvas.

A Amazônia, como o Nordeste, é a região do país mais sensível a El Niños. Essa sensibilidade ficou exposta em 1998, quando um incêndio florestal de proporções assustadoras arrasou 140 mil hectares de mata em Roraima. Com o aquecimento global, essa sensibilidade aumenta, como também aumentaria, possivelmente, o número de El Niños como o de 1997/98.

Alguns modelos de computador que simulam o comportamento futuro do clima chegam a prever uma sequência de mega-niños a partir de 2050 que poderia causar um colapso na floresta. Por enquanto, são só gráficos em computador. Mas os climatologistas já estão de cabeça quente.

O brasiliense Claudio Angelo, 27, é jornalista, ouve rock progressivo, toca contrabaixo e costumava torcer pelo Gama.

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