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25/02/2003 - 03h20

"Ser mercado ou ser nação, eis a questão"

ALCINO LEITE NETO
da Folha de S.Paulo, em Paris

Para o historiador Luiz Felipe de Alencastro, o governo brasileiro precisa dedicar mais atenção às escolas secundárias do que às universidades. "O problema no Brasil está mais no ensino secundário que no universitário", diz.

Alencastro, que é titular da cátedra de história brasileira na Sorbonne, conta, na entrevista a seguir, que as duas maiores dificuldades dos seus estudantes franceses para compreender o Brasil são o passado escravista e o sistema federalista do país.

Folha - Qual é a importância de o Brasil ter uma cátedra na Sorbonne?
Luiz Felipe de Alencastro -
Existem várias cátedras de história do Brasil pelo mundo afora, mas, em geral, elas têm funções limitadas e dependem de financiamento temporário. Sendo assim, elas podem se extinguir a qualquer momento e não estão inseridas solidamente na estrutura universitária. Trata-se da única incorporada na universidade e no Orçamento nacional da França. Ela só acaba quando a França acabar. Essa cátedra permite criar uma demanda de estudos sobre o Brasil e formar pesquisadores voltados especificamente para o país.

Folha - Quais são as principais dificuldades que um francês encontra para entender a história brasileira?
Alencastro -
Há duas dificuldades principais: a compreensão do escravismo e, para a época mais recente, o entendimento do federalismo e do sistema presidencial no Brasil —a mesma que os franceses têm para entender os Estados Unidos. Eles não sabem exatamente qual pode ser o papel e a estratégia política de um governador, pois não têm essa figura aqui.

Outra tarefa é fazê-los entender nossa tradição parlamentar, que foi mantida desde a Independência e mesmo na ditadura militar. É preciso lhes explicar que, entre a ditadura e a democracia, existe essa tradição parlamentar brasileira —oligárquica, mas que não é pouca coisa, comparada à de países autoritários do Terceiro Mundo.

A outra dificuldade é a ambiguidade da idéia de Terceiro Mundo. O conceito já se esvaziou, mas ele formou uma geração inteira que misturava os problemas do Brasil e dos países latino-americanos com os das nações asiáticas e africanas que só se tornaram independentes há 30 ou 40 anos. Como disse, há o fato de que nosso país tem uma vida política enraizada e ativa.

Folha - Como o sr. avalia o interesse de seus alunos pela história do Brasil?
Alencastro -
Tenho alunos de toda parte: há estudantes franceses que trabalham com a atualidade e outros que estudam os sistemas escravistas. Há também franceses de origem portuguesa que passam a se interessar pela história portuguesa por meio do passado colonial brasileiro. Há uma curiosidade crescente apesar de a cátedra ser relativamente nova.

Na França, há uma renovação do interesse pelo Brasil. Os dois jornais mais importantes, "Le Monde" e "Libération", têm correspondentes no país, e as últimas eleições brasileiras chamaram muito a atenção.

A França também tem um trunfo documental, o acervo de livros do século 19 da Biblioteca Nacional François Mitterrand. Como os livros brasileiros eram geralmente impressos na França, há exemplares de quase todas as primeiras edições. Quem quer estudar o século 19 no Brasil precisa pesquisar aqui.

Folha - Como o sr. avalia o ensino da história nas escolas brasileiras?
Alencastro -
Creio que a história nas escolas brasileiras se ressinta da falta de meios humanos e materiais. Predomina ainda um ranço das duas ditaduras (a do Estado Novo e a militar) que abafa o espírito crítico em favor de uma educação cívica ufanista. Cria, assim, a idéia de um excepcionalismo do Brasil na história, que não dá conta das oportunidades perdidas do país, geradoras das carências que se perpetuam até hoje.

A graduação universitária brasileira funciona como uma recuperação do atraso do ensino secundário, a pós-graduação tenta recuperar a insuficiência da graduação e assim vai a coisa, sempre abaixo do nível estabelecido. O problema no Brasil está mais no ensino secundário que no universitário, que, aliás, tem um sistema de financiamento de pesquisas de dar inveja a estudantes de outros países da América Latina.

Folha - Por que o sr. mudou o nome do Centro de Estudos do Brasil para Centro de Estudos do Brasil e do Atlântico Sul?
Alencastro -
Um pouco para ampliar a força do centro, de modo que não fique isolado e acabe, assim, sendo "engolido" por centros latino-americanos. Além disso, para inserir o estudo num conjunto mais amplo do que o território brasileiro, o contexto ultramarino português, incorporando as relações com a África e com a região do rio da Prata. Com isso, reforçamos a dimensão histórica e fazemos ainda ligações com africanistas, que são um grupo forte na França.

O Brasil está mais ligado historicamente aos países relacionados ao Atlântico Sul do que com o México e com o Peru, por exemplo. Como eu tento mostrar em meu livro ["O Trato dos Viventes"], havia entre Pernambuco e o Rio de Janeiro mais ligações com Angola do que com a Amazônia. Essa perspectiva sul-atlântica restabelece um espaço mais amplo que havia na história colonial e que desapareceu por causa da predominância da história territorialista do Brasil.

É preciso ensinar que a história colonial não ficou circunscrita ao território brasileiro. Os bandeirantes devassaram o Paraguai. Por causa do tráfico negreiro, o Rio de Janeiro e Luanda tinham relações estreitas. Em geral, os ensinos secundário e universitário brasileiros encadeiam nossa história numa sequência longa e territorial, como se ela estivesse programada na carta de Pero Vaz de Caminha. Enquanto não foi nação, enquanto foi só mercado colonial, o Brasil não existiu. Por isso o ponto fundamental de nossa história continua sendo: ser mercado ou ser nação, eis a questão!

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