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25/02/2003 - 04h06

Pesquisa: vocação ou marketing?

FLÁVIO FERREIRA
MARCELO VAZ

free-lance para a Folha de S.Paulo

Tudo pode não passar de um balão-de-ensaio, mas o fato é que as universidades particulares —muitas recém-chegadas ao mercado de ensino— começam a despontar no mais sofisticado universo acadêmico: o da pós-graduação e da pesquisa científica.

Arte/Folha Online

Os números não dão margem a dúvidas. Em apenas quatro anos, a participação das instituições privadas nesse segmento registrou crescimento expressivo. Em 1998, essas escolas eram responsáveis por 9% dos programas de pós-graduação, segundo a Capes (Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior). Em 2001, de acordo com o último dado disponível, a fatia havia passado para 13%.

O crescimento, porém, não conta toda a história. Em primeiro lugar, muitas universidades particulares estariam investindo em pós e pesquisa não por vocação, mas para atender a uma exigência legal. A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), de 1996, obriga as universidades a ter pesquisa institucionalizada até o final de 2004. Em segundo, outras tantas estariam mais interessadas na imagem, capitalizando o prestígio decorrente de poder oferecer no cardápio escolar o filé do trabalho acadêmico. Consistência educacional ou circunstância mercadológica —eis a questão.

Entrar no cobiçado mundo da pós e da pesquisa não é tarefa simples. "Não é da noite para o dia que a universidade se torna um centro de excelência", diz Carlos Roberto Jamil Cury, presidente da Capes. Para ele, é necessário investir, planejar e, sobretudo, dar tempo ao tempo. "As PUCs, por exemplo, desfrutam de um prestígio que vem sendo conquistado gradualmente desde os anos 60", afirma.

Universidades privadas que mantêm um compromisso com a produção de ciência cada vez mais atraem pesquisadores. José Jorge Neto, pesquisador da área de farmácia e bioquímica da Uniban (Universidade Bandeirante de São Paulo), aposentou-se como professor titular pela Unesp e afirma que, "nas universidades privadas, o pesquisador tem de enfrentar menos entraves burocráticos e de política acadêmica do que nas públicas".

Outro pesquisador a ter reconhecido o novo planejamento das particulares é o geólogo Heraldo Campos, da Unisinos (Universidade do Vale do Rio dos Sinos), que iniciou sua carreira na USP. "Há nas particulares a mentalidade de uma empresa: a fiscalização dos custos dos projetos é minuciosa e há um acompanhamento dos resultados pela direção", diz o pesquisador, que coordenou o mapeamento do aquífero Guarani, uma reserva subterrânea de água doce localizada entre as bacias do Paraná e do Chaco-Paraná. O estudo será utilizado em projetos de preservação do aquífero com fundos originados de organismos internacionais, como o Banco Mundial.

Roberto Leal Lobo e Silva Filho, ex-reitor da USP e sócio-diretor de uma empresa de consultoria na área de educação, critica as universidades que montam organismos de pesquisa apenas para atender às exigências da LDB ou a interesses ligados ao marketing. "Esses novos órgãos surgiram quase sempre artificialmente, não para regulamentar ou apoiar uma pesquisa existente, mas para, de cima para baixo e burocraticamente, criar uma instância de pesquisa nos gabinetes dos administradores universitários", afirma.

Mas o consultor entende que não se deve esperar que todas as instituições privadas realizem pesquisa científica de ponta. Ele diz que, nos Estados Unidos, apenas 4% das universidades têm pesquisa considerada de alto nível e que, na Europa, esse número é ainda menor. Lobo e Silva afirma que isso ocorre porque as pesquisas pesam muito no orçamento das instituições de ensino superior, o que leva institutos de pesquisa públicos e empresas do exterior a patrocinar a maior parte da produção científica.

Pedro Azevedo/Folha Imagem
Laboratório do Centro Interdisciplinar de Investigação Bioquímica da Universidade de Mogi das Cruzes

Lobo e Silva foi um dos responsáveis pelo projeto de implantação da área de pesquisa na UMC (Universidade de Mogi das Cruzes), em 1994. Posteriormente, assumiu a reitoria da universidade, cargo que exerceu de 1996 a 1999. Formou uma equipe de nomes de reputação no meio acadêmico e efetuou o projeto.

Outra instituição que busca a evolução no campo da pesquisa é a gaúcha Ulbra (Universidade Luterana do Brasil). Segundo o pró-reitor de pesquisa da universidade, Edmundo Kanan Marques, a universidade aplica desde 1999 um programa que visa à melhora na qualidade da pesquisa. Entre as exigências está o envio de projetos para a avaliação de pesquisadores de fora da instituição.

Marlene Bergamo - 15.jun.2000/Folha Imagem
Oscar Hipólito: "Sem pesquisa científica de bom nível, as universidades correm o risco de se tornar enormes colégios"
Na década de 90, a Uniban também deu os primeiros passos na pesquisa, com a chegada de Oscar Hipólito, ex-titular do Instituto de Física e Química da USP de São Carlos. Ele assumiu a Pró-Reitoria Acadêmica em 1999 e começou a organizar os projetos de pesquisa científica na instituição.

"Sem pesquisa científica de bom nível, as universidades correm o risco de se tornar enormes colégios. Elas precisam ter professores que pesquisem e estejam à frente dos conteúdos dos livros indicados nos programas", diz Hipólito. Os primeiros resultados da mudança em relação à pesquisa apareceram em 2002: o pesquisador José Agustín Quincoces Suárez desenvolveu um composto derivado do própolis que, em testes com camundongos, mostrou ter baixa toxicidade e efeitos curativos semelhantes aos dos medicamentos usados em quimioterapias.

Uma maneira de medir a produção científica nas universidades é por meio da quantidade de grupos de pesquisa cadastrados no CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico). Segundo o CNPq, quando um pesquisador pede recursos a uma agência de fomento, considera-se, entre outros fatores, a experiência e o potencial do grupo do qual ele participa. Mas grupo não é sinônimo nem pré-requisito de pesquisa. Na USP, a líder do ranking do CNPq (veja quadro), 70% dos pesquisadores fazem parte de grupos, segundo a Pró-Reitoria de Pesquisa da universidade.

Em relação a outras das maiores universidades do país, a Uniban tem uma desvantagem: nenhum grupo de pesquisa registrado no CNPq. Segundo Hipólito, isso se deve ao fato de os programas de pesquisa da universidade serem recentes e, por isso, ainda não estarem consolidados. O pró-reitor espera que, em março, a universidade comece a cadastrar seus grupos. Ele acredita que já seriam mais de 30, caso isso já tivesse sido feito.

O presidente da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Carlos Vogt, afirma que, apesar de melhor do que há oito anos, quando era praticamente inexistente, a qualidade da pesquisa científica nas universidades privadas ainda está longe do ideal. O volume de recursos que as particulares obtêm ainda é relativamente pequeno. Nos últimos anos, a fatia obtida da Fapesp variou de 4,75% (R$ 24,6 milhões), em 1999, a 3,94% (R$ 20,6 milhões), em 2001. "Os dirigentes das universidades privadas precisam abrir mão de certa parte dos seus lucros para investir em pesquisa. Isso é fundamental para promover uma maior distribuição da qualidade do ensino", diz.

Suzelei de Castro França, da Unidade de Biotecnologia da Unaerp (Universidade de Ribeirão Preto), diz que os pesquisadores de universidades privadas às vezes são vistos com reserva por integrantes das entidades de fomento à pesquisa. "Os projetos sérios e de qualidade, porém, não deixam de ser aprovados e financiados", diz a pesquisadora. Isaac Roitman, diretor de avaliação da Capes, concorda: "Não há distinção entre a condição da universidade, há critérios para cada área".

Até mesmo os centros universitários, que não têm a obrigação de realizar pesquisas, têm demonstrado interesse pela produção científica. O Centro Universitário da Cidade (UniverCidade), por exemplo, reserva cerca de 12% do orçamento da instituição para a pesquisa —e, segundo Paulo Alonso, reitor de desenvolvimento da instituição, foram criados institutos específicos para cuidar de pesquisas em áreas como o direito e a biologia.

Por maiores que tenham sido os avanços no segmento de maior prestígio, as universidades particulares ainda têm um longo caminho a percorrer antes de se aproximar das conquistas na área de graduação. Nesse nível, pode-se dizer que elas dominam o mercado, ao menos em termos quantitativos: são responsáveis por 75% dos quase 600 mil alunos das 20 maiores universidades. Na pós e na pesquisa, elas, por enquanto, apenas soltam balões-de-ensaio. Se estão no rumo certo, os ventos acadêmicos dirão.

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