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25/02/2003 - 04h02

Verbete: Quem vota e quem veta na ONU

RICARDO BONALUME NETO
da Folha de S.Paulo

Reprodução
Organizações internacionais não têm bom currículo quando se trata de prevenir guerras. Ela foi chamada de Grande Guerra, a guerra para acabar com todas elas, a última todas da história. Tinha sido a mais devastadora guerra da história da humanidade, e por isso os diplomatas inventaram em seguida uma entidade que ajudaria a evitar conflitos semelhantes.

Mas a infeliz Liga das Nações falhou em seu objetivo principal, e logo surgiu uma guerra maior ainda. A anterior perdeu, portanto, a designação de Grande Guerra e passou à história como a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). A que veio depois virou, naturalmente, a Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Como de praxe, foi criada uma nova entidade com o mesmo objetivo básico: prevenir guerras. A ONU (Organização das Nações Unidas) é filha dileta da Segunda Guerra. O próprio nome vem dela. Os países que se aliaram para vencer as ditaduras alemã, italiana e japonesa se chamaram "nações unidas".

Quando criada, a ONU representava pouco mais da metade da população humana. Além dos países que não foram convidados para pertencer a ela, havia uma enorme massa de pessoas vivendo em colônias.

A Assembléia Geral foi criada para ser o órgão central da entidade, representando todos os países de modo igualitário. Com a descolonização da Ásia e da África, o número de países-membros mais que dobrou. Mas, em termos de guerra e paz, quem dava e ainda dá as cartas é o Conselho de Segurança. Esse órgão reúne apenas 15 países, cinco dos quais são membros permanentes —não por acaso, os principais vencedores da Segunda Guerra Mundial.

Durante a guerra, a estratégia aliada era definida pelos "três grandes": Estados Unidos, União Soviética e Reino Unido. Na prática, foram os EUA e a URSS que venceram a guerra; os britânicos tiveram o papel fundamental de resistir aos alemães, mas jamais teriam vencido sem a ajuda dos países que se transformaram nas duas superpotências da segunda metade do século 20.

Na hora da paz, foram agregados dois outros aliados mais ou menos importantes —a militarmente decadente França (ocupada pelos alemães de 1940 a 1944) e a China, cuja resistência ajudou a solapar o poderio do Japão. Eram esses os cinco países mais poderosos do mundo em 1945.

Isso se reflete até hoje no Conselho de Segurança. Esses cinco países são os únicos que têm o poder de vetar resoluções do Conselho. Mesmo que os outros 14 membros estejam a favor, basta um veto de um dos cinco "grandes" para anular a decisão.

Durante a Guerra Fria, isso tendeu a imobilizar a ONU. Se os EUA eram a favor, o provável era que a URSS fosse contra e vice-versa.

Para o azar dos EUA, os comunistas de Mao Tse-tung tomaram o poder na China em 1949. Com isso, seriam dois os países comunistas com poder de veto. Mas os EUA convenceram o resto do mundo de que os nacionalistas chineses refugiados na ilha de Formosa, ou Taiwan, representavam toda a China —afinal, era o mesmo governo pró-americano de 1945.

Só na década de 70 o Conselho de Segurança trocou Taiwan pela China comunista. Na mesma época, o presidente americano Richard Nixon fez uma histórica visita à China.

Mas os comunas também cometeram erros estratégicos. Os soviéticos se ausentaram do Conselho de Segurança, em protesto, logo antes de uma votação crucial: a intervenção na Guerra da Coréia (1950-1953). Como resultado, os EUA conseguiram convencer o conselho a intervir a favor da capitalista Coréia do Sul contra o ataque da comunista Coréia do Norte. As tropas que lutaram então o fizeram sob a égide da ONU.

Aprendida a lição, os soviéticos não caíram mais no mesmo erro. Desde então, o Conselho de Segurança envolveu-se mais em tentar mediar conflitos e enviar, em seguida, forças de manutenção (e não de "imposição") da paz.

Quando um Estado de fato, indiscutivelmente, age como agressor, a ONU pode sancionar uma represália. Foi o caso do Iraque que, em 1990, invadiu e ocupou o Kuait e dali foi "botinado" legitimamente pela coalizão liderada militarmente pelos EUA. Os argentinos, em 1982, também foram condenados por invadir as Falklands/Malvinas.

A pós-comunista Rússia sucedeu à URSS no Conselho. Continua ali a França, mas não países com igual ou maior peso político-econômico no mundo, como o Japão e a Alemanha —não por acaso, os dois grandes perdedores da Segunda Guerra. Países do Terceiro Mundo com relevância regional, como o Brasil e a Índia, poderiam ser membros permanentes do Conselho, mas isso levaria a ter poder de veto —e as grandes potências (principalmente os EUA) não gostariam disso.

Há um jogo de poder constante na ONU e nas agências especializadas ligadas a ela. Foi o caso da forte pressão americana para tirar o diplomata brasileiro José Maurício Bustani, atual embaixador do Brasil em Londres, da chefia da Organização para a Proibição das Armas Químicas, entidade criada em 1997 e responsável pela implementação da convenção que proíbe esse tipo de armamento.

Foi um exemplo da ocasional truculência americana em um assunto que interessa muito aos EUA —especialmente agora, em que a existência dessas "armas de destruição em massa" faz parte dos motivos para atacar de novo o Iraque.

Claro, sempre é possível agir sem o aval da ONU. Não só os EUA agora mas vários países (ou organizações voltadas à tomada do poder em algum país), com bem menos força, conseguiram fazê-lo, como mostra a história do mundo pós-1945. Na prática, qualquer país que entra em guerra está agindo sem o aval da ONU. Os argentinos não pediram permissão para invadir as Falklands, nem o Iraque para invadir o Irã em 1980 ou o Kuait em 1990. Quando a Indonésia tomou Timor Leste em 1975, também tomou uma decisão sem aval internacional. Nem todos os países buscam a legitimidade de uma organização internacional para atacar outro. Basta ter poder.

Ricardo Bonalume Neto, 42, é jornalista. Cobriu conflitos na África e na Ásia e escreve sobre história militar para revistas estrangeiras. É autor de um livro sobre os brasileiros em combate na Segunda Guerra. Adorou atirar com fuzis automáticos. Mas, no fundo, é uma pessoa sensível.

     

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