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25/03/2003 - 03h10

Perfil: O reinventor da roda

ALEXANDRA OZORIO DE ALMEIDA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Além do indefectível chapéu, há uma outra coisa que Sebastião Rocha não tira da cabeça: a idéia de que a escola, no sentido físico, é dispensável para a educação. O adereço se incorporou à sua figura há quatro anos. Quanto à convicção, é mais antiga. Data de meados dos anos 80, quando o antropólogo especializado em folclore ainda não era o premiado e polêmico educador identificado mundialmente com a pedagogia dos saberes populares.

Fotos Katia Lombardi/Folha Imagem
Tião Rocha, na sede de sua ONG, em Curvelo (MG)

Aos 54 anos,Tião ("Sebastião é meu apelido, ninguém me chama assim") tem o prazer de ter visto sua idéia vingar. O caminho, porém, foi e continua sendo acidentado. A certa altura, em 1995, Tião esteve mesmo a ponto de não ver mais sentido em seu trabalho. Mineiro de Belo Horizonte, ele conta o "causo".

Um dia, sentado debaixo de um pé de manga, numa roda de educadores em Curvelo (MG), se perguntou: "O que eu vim fazer aqui?". O motivo da reunião era avaliar um dos projetos com que trabalha, o Ser Criança, que atende crianças e adolescentes de 7 a 14 anos. "Percebi que estávamos avaliando as atividades, e não os objetivos do trabalho. Dava certo na hora de colocar no papel, mas havíamos nos perdido na hora de fazer a ponte com a prática", lembra.

Essa reflexão —que coincidiu com o 11º aniversário do CPCD (Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento), uma ONG fundada por Tião— provocou uma crise que acabou se tornando um divisor de águas. O grupo decidiu que, a partir de então, seus objetivos teriam de conduzir a resultados palpáveis —caso contrário, o esforço seria em vão.

Raio-X:

Nome: Sebastião Rocha
Idade: 54 anos
Estado civil: divorciado, pai de Fernanda, 28
Formação: folclorista graduado em história, com pós-graduação em antropologia (cultura popular) pela UnB e pelo Museu Nacional
Profissão: educador
Livro de cabeceira: "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa
Lazer: ouvir música, ler, andar, jogar e assistir a partidas de futebol


Intelectual de opiniões fortes e defendidas com a devida ênfase, Tião não admite ser cumprimentado pelo que não faz. A menção ao CPCD como uma ONG que tira meninos da rua basta para deixá-lo indignado. "Lugar de menino é na rua", diz. "O que quero é mudar a rua, para que seja um lugar de convívio e solidariedade."

A sede do CPCD, em Belo Horizonte, fica na casa onde Tião nasceu e cresceu. "Conheço todas as pedras desta rua." Recém-casados, seus pais deixaram o oeste do Estado para tentar a vida na capital. O pai conseguiu emprego na prefeitura e aprendeu topografia. Lá era chamado de "doutor Rocha", mesmo tendo apenas a quarta série do ensino fundamental.

Como trabalhava no planejamento da cidade, Rocha comprou um lote para construir a casa que abrigou a família de nove filhos (Tião é o penúltimo). Quando o menino tinha 11 anos, o pai morreu. "Sobrou para a minha mãe, uma baixinha forte e brava", conta ele. Dos irmãos, era quem mais apanhava, de correia, corda e vara de marmelo. "Hoje, enquadraria minha mãe no Estatuto da Criança e do Adolescente", brinca.

Apesar da lembranças das surras, nunca quis sair de lá. "Sou muito ligado ao lugar. Tive uma rua muito boa, fui criado nela. Acho que fui um privilegiado, as pessoas que conheci lá me ajudaram muito. Hoje, tento disponibilizar tudo o que pude experimentar."

Após formar-se em história, Tião se tornou professor da Universidade Federal de Ouro Preto. Depois de alguns anos, começaram os conflitos com a academia. "Estava encastelado. A universidade não recicla, cheira a mofo", reclama. Em 1982, pediu demissão e passou o ano seguinte planejando o CPCD. "Percebi que a pessoa física não tinha espaço", diz. Em 1º de janeiro de 1984, fundou com amigos a ONG da qual é, hoje, diretor.

Quase 20 anos depois, o CPCD tem 30 pessoas na folha de pagamento, entre funcionários e membros da diretoria. Cerca de 15 mil crianças e adolescentes já passaram pelos projetos da organização, que tem cerca de 200 educadores.

Tião Rocha recebe crianças na sede do Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento
O trabalho começou em meados de 1984, quando a Prefeitura de Curvelo convidou Tião para ministrar palestras sobre cultura popular e folclore. Das conversas que manteve, surgiu um convite: assumir o Departamento de Educação e transformar o CPCD em parceiro institucional da prefeitura. "Quando começamos o trabalho, a pergunta que eu me fazia era: 'É possível fazer educação sem escola?'. Estávamos falando de um município pobre, com uma política de educação praticamente inexistente e com um monte de meninos circulando sem escola, semi-analfabetos."

Nas primeiras reuniões, os professores da rede descreveram as suas atividades. "Uma professora contou que mimeografava o contorno de um patinho, que os alunos tinham que preencher com as cores certas —ai de quem o pintasse de azul! Os desenhos ficavam, então pendurados no 'varal de criatividade'." Outra relatou que havia levado os alunos para fora da classe. As crianças fizeram desenhos no chão, com pedrinhas e folhas. "Ela me disse: 'Não sei se isso dá certo, mas os alunos estavam muito mais disciplinados'." Dessas discussões, surgiu o Projeto Sementinha, voltado para crianças de 4 a 6 anos e hoje espalhado por vários Estados.

Tião foi à rádio da cidade e fez uma convocatória para quem estivesse interessado em participar das discussões para pensar na escola que queriam fazer.

As reuniões eram sempre em círculo, o que deu origem ao primeiro dos três pilares que compõem a metodologia do CPCD: a pedagogia da roda. "Na roda, todo mundo, confortavelmente instalado, vê todo mundo. Todos falam e escutam, ninguém é excluído", explica o educador. Nela, não há eleição: sempre se busca o consenso. "Se temos 20 pessoas e dez propostas, colocamos as dez em pauta e começamos pela mais urgente. Isso leva todo mundo a propor coisas", afirma Tião. A roda dá início às atividades do dia em todos os projetos da ONG.

Boneco utilizado nas atividades do CPCD
Em Curvelo, surgiu também a segunda base metodológica da ONG: a pedagogia do sabão. Quando Tião pediu às professoras relatórios avaliando as escolas, a resposta veio em forma de listas de materiais em falta. "Perguntei: 'Para fazer educação vocês precisam disso?'. Uma professora disse que havia vários produtos que ela mesma poderia fazer." Ele mandou a professora ir em frente e os alunos da quarta série fizeram sabão.

Essa atividade desencadeou o Projeto Fabriquetas (ou Núcleos de Produção de Tecnologias Populares), hoje presente nas cidades mineiras de Curvelo, São Francisco e Araçuaí. O projeto apropriou-se e adaptou mais de 1.700 tecnologias populares de baixo custo. São aplicados e criados instrumentos de organização coletiva e auto gestão, que possibilitam a autonomia das unidades.

Os produtos, feitos por jovens e mulheres das comunidades, são vendidos pela Cooperativa Dedo de Gente, que reúne esses núcleos desde 1996. Para tornar-se membro, é preciso integrar uma Fabriqueta. Esse preceito também está na base da metodologia do CPCD: "educação é algo que só ocorre no plural".

Entre os produtos comercializados pela cooperativa, está o Bornal de Jogos —"Vem de embornal, sacola; é que mineiro é pão-duro, come as palavras", brinca Tião. O produto foi desenvolvido com base no terceiro pilar do CPCD: a pedagogia do brinquedo, no Projeto Ser Criança.

Quando as primeiras crianças deixaram o Sementinha para entrar na escola, o CPCD decidiu acompanhá-las. Elas queriam continuar com as brincadeiras, e a ONG não oferecia atividades de reforço escolar. Resultado: no final do primeiro ano, todas repetiram. "Os pais queriam tirar as crianças do grupo, e vimos que a batata quente estava nas nossas mãos", conta o educador.

A solução acabou vindo à tona. Um dos meninos do projeto, quatro vezes repetente da primeira série, não conseguia aprender as operações matemáticas. "Só que ele era bom no jogo de damas. Pensamos: dama não é lógica? Inventamos um tabuleiro com números, peças com sinais de 'mais' ou 'menos' e criamos um jogo", diz. O menino não só aprendeu a fazer conta como foi advertido pela professora, que duvidou da autoria da lição de casa.

Para provar sua inocência, o menino levou o jogo à aula, onde acabou sendo adotado. Ao devolver a "damática" (dama+matemática), a professora perguntou por outros jogos. "O menino abriu a porta", conta Tião. A partir da "damática", um grupo composto por crianças e adultos começou a criar brincadeiras para resolver dificuldades de aprendizado.

Foram desenvolvidos e adaptados 168 jogos, depois testados na rede educacional de Curvelo. Os que tiveram mais de 70% de aprovação por parte de alunos e professores foram considerados "tecnologias de educação". Hoje, são produzidos pelas fabriquetas e vendidos pela cooperativa, acomodados dentro de um colorido embornal de pano.

Um dos pontos cruciais do trabalho desenvolvido pelo CPCD é a formação dos educadores. "Educador também aprende", afirma Tião. Não é preciso RG ou diploma: professores com especialização ou mães semi-analfabetas passam pelo mesmo processo. "A diferença está nos instrumentos de apoio. Para quem não sabe ler, não damos textos, contamos histórias", explica Tião.

Nos primeiros anos, a ONG foi financiada principalmente por fundações estrangeiras, como a Fundação Kellogg, dos Estados Unidos, parceira desde 1991. De 1995 até 2000, entraram em cena parceiros brasileiros. Já nos últimos anos, além da prestação de serviços, o CPCD tem visto os seus projetos serem incorporados a políticas públicas.

Bom de prosa, o único assunto sobre o qual Tião desconversa é a sua vida pessoal. Divorciado, namora Regina Bertola, diretora do Ponto de Partida, grupo musical e teatral sediado em Barbacena (MG). No pouco tempo livre, Tião precisa percorrer 170 km para visitar a namorada.

Conhecedor do sertão mineiro, seu autor preferido é Guimarães Rosa. "Já li 'Grande Sertão: Veredas' umas 40 vezes. Li de trás para frente, do meio para o fim, falo trechos salteados", conta. "Foi um dos livros mais importantes para me fazer educador. A matéria pura da vida está em Guimarães Rosa, além da beleza literária."

O seu grande sonho, admite, era ser jogador de futebol. Chegou a integrar a equipe juvenil do Atlético Mineiro, escondido dos pais. Descoberto, levou uma surra que, somada à forte miopia, enterrou seu projeto esportivo.

A determinação que faltou na época como jogador lhe sobraria mais tarde como educador. Tião, afinal, se encaixa perfeitamente naquela definição de mineiro do escritor Pedro Nava: "um estado de espírito de teimoso".

     

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