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25/03/2003
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03h16
Verbete: Prevenir para não remediar
GUSTAVO PATÚ da Sucursal de Brasília
Reprodução | | |
| Os americanos contam a história de sua Previdência Social com o caso de Ida May Fuller, a primeira a receber os benefícios do sistema. Solteirona, sem filhos, tia Ida, como era chamada, se aposentou em 1939 do emprego de secretária e recebeu, até morrer, aos cem anos, em 1975, exatos US$ 22.889 em benefícios —muito mais do que havia pago em contribuições.
A história oficial da Previdência brasileira vai numa toada diferente: em 1888, um decreto regulou as aposentadorias dos funcionários dos Correios; em 1889, foi criado o Fundo de Pensões do Pessoal das Oficinas da Imprensa Nacional; em 1900, o Montepio Obrigatório dos Empregados do Ministério da Fazenda. E assim por diante, ano a ano, corporação a corporação.
Tanto o prosaico episódio americano como a burocrática narrativa nacional servem como imagens que ajudam a entender o interminável debate travado em todos os lugares em torno da reforma da Previdência.
O mundo não sabe como sustentar os mecanismos de amparo à velhice —símbolos de um capitalismo mais humanitário, conceitualmente reforçado após a Segunda Guerra Mundial— em sociedades cada vez mais longevas. Filhos e netos relutam em gastar cada vez mais para manter pais e avós, numa versão financeira do conflito de gerações que inspirou artes e comportamentos no pós-guerra.
No Brasil, o conflito de gerações ainda está em segundo plano, ofuscado pelo mais urgente conflito entre incluídos e excluídos ou, mais apropriadamente, entre mais e menos incluídos. A discussão começa pelos benefícios (ou privilégios, conforme quem faz uso da palavra) de servidores públicos em geral —militares, juízes e outras castas em particular.
Números e previsões são fartamente divulgados. Nos países desenvolvidos, a expectativa de vida ao nascer passou de 65 anos, nos anos 50, para 75 anos no final do século passado, e a ciência continua trabalhando para que casos como o de miss Fuller não sejam exceções. No ano passado, 2,5 milhões de inativos e pensionistas do Estado custaram R$ 39,8 bilhões aos cofres públicos brasileiros, enquanto os demais 21 milhões de aposentados brasileiros levaram R$ 17 bilhões.
Qualquer que seja o enfoque, porém, toda proposta de reforma da Previdência será sempre chata e antipática. Chata por envolver minúcias da legislação e cálculos infindáveis; antipática porque, por mais que os defensores caprichem na retórica, o assunto será sempre a redução de direitos conquistados ou concedidos.
Trata-se de iniciar um processo, cujo ponto final é imprevisível, de desmantelamento das redes de proteção social criadas em todo o mundo para atenuar os riscos inerentes à economia de mercado. Mesmo no Brasil, onde se argumenta que a seguridade transfere renda de pobres para ricos, os benefícios dos pobres acabarão sendo revistos mais uma vez algum dia.
Para tornar o tema ainda mais difícil para os políticos que se vêem obrigados a abordá-lo, é preciso também convencer os eleitores de hoje a fazerem sacrifícios em prol de pessoas que ainda não nasceram ou são ainda muito novas para votar.
Ironicamente, quem faz o papel de lobista das futuras gerações é o pragmático e amoral mercado financeiro, emprestador de dinheiro aos governos ricos e pobres. Os credores vasculham as contas dos devedores e descobrem que, com os sistemas atuais de aposentadoria, devem cobrar juros mais altos para cobrir os riscos de calote no futuro. Esse argumento pró-reforma, como já deve ter descoberto o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é poderoso.
Gustavo Patú, 33, é autor de "A Especulação Financeira" (Publifolha). No jornalismo, sempre gostou de explorar temas chatos e antipáticos, como reformas, macroeconomia e programas de governo.
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