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29/04/2003 - 02h58

Escola tipo exportação

SUZANA BARELLI
free-lance para a Folha de S.Paulo

A afirmação de que educação é um serviço à venda pode chocar os que, tendo em mente a Declaração Universal dos Direitos Humanos, acreditam se tratar de um direito cidadão. Mas é assim, como um serviço, e não como um direito, que a educação é tratada na OMC (Organização Mundial do Comércio), o xerife do comércio internacional.

O tema integra o cardápio de negociações da OMC desde sua criação, em 1995. De acordo com o cronograma da organização, porém, será a partir deste ano que os países-membros começam efetivamente a decidir sobre as regras para a comercialização do ensino. "O objetivo da OMC é assegurar o livre comércio privado dos serviços educacionais, sujeitos às regras dos órgãos reguladores competentes", afirma Felipe Hees, coordenador-adjunto nacional de comércio e serviço do Ministério das Relações Exteriores. Órgãos competentes, no caso, são a OMC, na negociação entre países, e o MEC (Ministério da Educação), no Brasil.

Na próxima reunião do conselho da OMC, em maio, estará em pauta a posição dos países sobre as propostas liberalizantes do comércio dos serviços educacionais já apresentadas. O prazo para a entrega de propostas, no final de março, foi cumprido por apenas dez países. Até meados de abril, mais seis nações haviam entregado seus documentos. Os demais, Brasil inclusive, aguardarão o desenrolar das negociações de todos os serviços, e não apenas dos de educação, para definir uma posição.

Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, todos com a educação como importante item em suas balanças comerciais, lideram as propostas a favor do livre mercado. "São os países que já exportam esse tipo de serviço, com receitas significativas", afirma Carlos Roberto Antunes dos Santos, secretário de educação superior do Ministério da Educação brasileiro. A Austrália, por exemplo, exportava US$ 6 milhões em ensino superior em 1970 e chegou a US$ 2 bilhões três décadas depois, segundo a OECD (Organização para a Cooperação Econômica e Desenvolvimento). No ano de formação da OMC, por exemplo, os EUA exportaram US$ 7,5 bilhões em serviços de educação, também segundo a OECD.

Nas rodadas preliminares, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil informou à OMC que o país tem interesse em exportar cursos superiores e expandir o ensino da língua e da história nacional na União Européia e em países como Austrália, Canadá, Índia, México, Japão, Coréia e Estados Unidos. Mas, por aqui, os ditos serviços educacionais ainda não têm peso nas relações comerciais, e a discussão sobre sua liberalização —capaz de mudar a origem dos recursos, as disciplinas ministradas e até os diplomas aceitos pelo MEC— ainda é incipiente.

O IEA-USP (Instituto de Estudos Avançados) prepara um documento sobre a liberalização do setor, mas a maioria dos acadêmicos desconhece o impacto que as medidas da OMC podem trazer para as instituições de ensino superior. Renato Flores, membro do grupo de especialistas da OMC e professor da FGV-RJ (Fundação Getúlio Vargas), acredita que a questão vá ganhar importância quando esse impacto for calculado. Mas o mercado consumidor potencial é grande. A estimativa é que apenas os estudantes com ensino médio completo que buscam uma instituição de ensino no exterior somem 1,5 milhão de pessoas no mundo e movimentem US$ 30 bilhões por ano.

Muitos, como o sociólogo especializado em educação Simon Schwartzman, consideram irreversível a identificação da educação como um negócio. A prova disso, segundo Célio da Cunha, assessor especial da Unesco no Brasil, é o estudo da consultoria Merill Lynch, que calculou o mercado do conhecimento: US$ 9,4 bilhões movimentados no ano 2000 apenas pelas vias virtuais e que deve chegar a US$ 53 bilhões em 2003.

Os especialistas prevêem que a abertura dos serviços educacionais deve afetar, num primeiro momento, as instituições privadas de ensino superior nacionais, principalmente a área dos cursos de pós-graduação "lato sensu". As universidades públicas podem entrar em discussão num segundo momento, provavelmente remoto. "A educação pública não está no âmbito da OMC", afirma Hees, do Itamaraty.

O raciocínio do impacto previsto com as novas regras é simples. Se mais empresas educacionais pretendem disputar o mesmo mercado brasileiro e seus alunos, quem deve perder com a concorrência internacional são os prestadores locais desse serviço.

"É a lógica econômica, que também se aplica ao mercado de educação", conclui Flores, da FGV-RJ. Oliver Mizne, diretor da Ideal Invest, consultoria especializada em educação, acredita que a liberalização dos serviços educacionais deve atingir principalmente as escolas consideradas de primeira linha no Brasil, que contam com 400 mil dos 3,2 milhões de alunos do ensino superior. "São pessoas que valorizam marcas fortes internacionais e que podem migrar para esses novos cursos", afirma Mizne.

Publius Vergilius/Folha Imagem
Marco Antonio Dias, da Universidade das Nações Unidas
Mesmo num previsto segundo plano, as universidades públicas devem se preocupar com as medidas, afirma o especialista Marco Antonio Dias, ex-diretor da Unesco e atualmente ligado à Universidade das Nações Unidas. Ele exemplifica a questão com a possibilidade de algum país reivindicar na OMC a igualdade de condições para a captação de alunos, como o ensino gratuito por exemplo, e acabar ganhando a causa. "Pelas cláusulas da organização, o tratamento para as instituições tem de ser o mesmo", alerta. Agueda Bittencourt, diretora da Faculdade de Educação da Unicamp, vê o perigo de uma expansão de instituições internacionais acabar minguando o ensino público. Para ela, a maior preocupação é com a possibilidade de essas universidades ganharem mercado com programas similares aos de suas matrizes, sem levar em consideração a cultura brasileira.

Marisa Cauduro - 26.set.02/Fotosite/Valor
Claudio Haddad, presidente do Ibmec Educacional
Nem todos, no entanto, temem essa dita invasão. Cláudio Haddad, presidente do Ibmec Educacional, diz que a origem do dinheiro da instituição tem pouca relevância no resultado final da atividade. O importante é que as regras de ensino sejam válidas para todas as escolas privadas e acompanhadas pelos órgãos competentes. "Em qualquer país o ensino é regulamentado, e as instituições seguem essas regras", afirma. Instrumentos capazes de regulamentar e garantir a qualidade do ensino, como os implementados normalmente pelo MEC, seriam os canais para garantir o bom funcionamento desse mercado.

Hoje, o custo para uma instituição de ensino se adequar à legislação nacional não é baixo. Cláudio de Moura Castro, presidente do Conselho Consultivo da Universidade Pitágoras, estima que a associação entre o grupo Apollo, dono da Universidade de Phoenix (EUA), e o grupo Pitágoras tenha custado cerca de R$ 10 milhões apenas para o grupo estrangeiro se adaptar à legislação e poder abrir, em conjunto com o grupo mineiro, uma faculdade em Minas Gerais. "Foi preciso remontar o curso e, ainda assim, para atender às leis brasileiras, usamos pouco do ensino norte-americano", afirma. Mizne, da Ideal Invest, pondera, ainda, que o potencial do mercado brasileiro pode não ser tão grande assim. Ele calcula em R$ 12 bilhões o faturamento do ensino superior privado no país, sendo R$ 2 bilhões relativos aos alunos de maior poder aquisitivo, que seriam mais atraídos pelas escolas estrangeiras. "É um montante pequeno para motivar uma invasão das instituições de ensino internacionais", afirma.

O relacionamento entre as instituições de ensino superior dos países membros do Mercosul são um exemplo de como o mercado ainda está fechado. Elizabeth Balbachevsky, do Departamento de Ciência Política da USP, lembra que ainda hoje não está definida a equivalência de diplomas entre os países do bloco econômico. "O ensino brasileiro ainda é muito fechado, e não só por questão da língua", afirma a professora. Com a prevista liberalização, por exemplo, as universidades estrangeiras que já aceitam matrículas de alunos brasileiros em seus cursos a distância sanariam seu maior problema: o reconhecimento do diploma no Brasil.

Mesmo assim, há quem afirme que o Ministério da Educação deveria aproveitar que a discussão ainda não está a pleno vapor nas esferas internacionais e dentro da OMC para cuidar melhor da regulamentação dos diplomas superiores e das faculdades brasileiras. "Para se precaver contra a dita invasão, o melhor é arrumar logo a casa", afirma Castro, do grupo Pitágoras. E colocar a casa em ordem significa um bom sistema de reconhecimento e avaliação de cursos e diplomas.

Simon Schwartzman concorda. Para ele, a discussão anterior à abertura do mercado deve estar focada no controle da qualidade do ensino no país. "Atualmente, 65% do ensino superior brasileiro é privado, e o governo dificilmente consegue intervir nesse segmento", afirma. Com a abertura, os acadêmicos devem ficar atentos a eventuais pressões para mudar a legislação, como a Lei de Diretrizes e Bases, que rege o setor no Brasil. "O perigo", diz o sociólogo, "é a OMC concluir que a legislação brasileira não é adequada e pressionar por mudanças". Ou a mudança pode ser pressionada pelas próprias propostas apresentadas por outros países. "Alguns países podem apresentar propostas muito abertas, que levem o Brasil a ter de mudar sua legislação", analisa Renato Flores, da FGV-RJ.

Arrumar a casa porque a qualidade do ensino poderá ter padrão internacional de comparação. Nessa discussão, começa a ganhar força a idéia de um selo de qualidade que atestaria a validade de bons cursos na esfera mundial, pouco importando a sua origem. Funcionaria como um comprovante capaz de abrir portas nos diversos mercados. Marco Antonio Dias, da Universidade das Nações Unidas, diz que uma primeira reunião para definir o selo já ocorreu, no início desse ano, com representantes do Canadá, da Inglaterra, dos Estados Unidos, da Nigéria, da África do Sul e da Índia. Mas ele questiona a pequena diversidade dos membros do comitê. "Apesar da presença de alguns representantes do terceiro mundo, a predominância é anglo-saxônica. Será que o Brasil quer essa influência em sua educação?", pergunta.

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