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29/04/2003 - 03h06

Leituras Cruzadas: O império compassivo e o renascimento da história

VINICIUS TORRES FREIRE
Secretário de Redação

Romeo Gacad - 25.mar.2003/Reuters
Soldados americanos descansam durante tempestade de areia, no Iraque
Queda do Muro de Berlim, fim da União Soviética, fim da história e decadência do império americano parecem palavras de um debate antigo, desgastado pelos acontecimentos de década e meia de história veloz. Soam ainda como expressões corroídas pela vulgarização, como meros slogans da euforia do establishment intelectual americano ou como apenas "wishful thinking" da esquerda derrotada ou somente frustrada pela vitória dos EUA na Guerra Fria.

No dicionário das idéias prontas da análise geopolítica, tais expressões pareciam ter cedido o lugar a termos como 11 de setembro, guerra contra o terrorismo, unilateralismo, crise da ONU, Iraque. Mas, no centro do debate intelectual americano sobre política externa, Osama bin Laden e Saddam Hussein parecem mais ruídos do que tiros no concerto da Pax Americana.

Três livros escritos nos meses entre os ataques da Al Qaeda e a invasão do Iraque indicam que outros problemas ocupam as mentes dos intelectuais-conselheiros do Império. A hipótese de o poder americano ser desafiado por Europa, China e Rússia; se o domínio da hiperpotência americana chegou a seu pico; se democracia liberal e mercados livres representam o fim da história; quais são as ameaças à ordem global que os EUA criaram e o que precisa ser feito para evitar sua destruição. Essas são as preocupações que Robert Kagan, Charles Kupchan e Michael Mandelbaum apresentam em seus livros.

Seus textos estão varados de teses e interpretações históricas que não passariam de graça pelo crivo de um intelectual europeu ou brasileiro. Mas parece mais interessante apresentar do que criticar essa visão de dentro que os três autores oferecem do debate no centro do poder americano. Kagan, Kupchan e Mandelbaum são figuras típicas de uma também muito típica instituição americana, os conselheiros do Império. Isto é, a parte da comunidade acadêmica que faz ou quer fazer parte dos conselhos de assessoria do presidente dos Estados Unidos, em geral intelectuais candidatos a cargos de planejamento ou decisão nas áreas política, econômica ou diplomática da Casa Branca.

"A América não mudou com o 11 de setembro. Apenas se tornou mais ela mesma", argumenta Kagan, pesquisador do Carnegie Endowment for International Peace, que serviu no Departamento de Estado no segundo governo Reagan (1984-1988).

"Os ataques terroristas na verdade desviam a atenção da política americana de um desafio central e muito mais perigoso: a volta da rivalidade entre os principais centros do poder mundial", escreveu por sua vez Kupchan em "The End of the American Era" ("O Fim da Era Americana"). Kupchan é professor de relações internacionais na Universidade de Georgetown e pesquisador do Conselho de Relações Exteriores, o principal centro americano de pensamento estratégico e diplomático. Serviu no Conselho de Segurança Nacional no primeiro governo Clinton (1992-1996).

Mandelbaum, professor de relações internacionais na Universidade Johns Hopkins e também pesquisador do Conselho de Relações Exteriores, não trabalhou no governo, mas é próximo do subsecretário de Defesa dos EUA, Paul Wolfowitz, o falcão- pensador do governo Bush.

"Na verdade, os ataques [de 11 de setembro] não revelaram um novo mundo" escreve Mandelbaum em "The Ideas that Conquered the World" ("As idéias que Conquistaram o Mundo"). "Em vez disso, iluminaram os principais aspectos de um mundo que já existia, um mundo que emergiu em sua plena forma uma década antes, mas que estava sendo gestado havia dois séculos."

Em junho de 2002, Kagan publicou um ensaio que fez carreira entre a elite política mundial e teve sucesso algo exagerado na mídia que os senhores do mundo ainda lêem. "Power and Weakness" ("Poder e Fragilidade") tentava explicar porque os "americanos são de Marte e os europeus são de Vênus".

A frase, que Kagan adaptou de um manual de auto-ajuda sentimental, quer dizer isso mesmo: americanos têm virtudes marciais, são propensos à guerra, porque têm poder para tanto; os europeus tendem a respeitar mais a lei internacional porque são militarmente fracos.

O ensaio de Kagan, revisto, algo aumentado, mas não muito melhorado, foi editado em livro neste ano, com um título um pouco menos condescendente e arrogante que o original: "Of Paradise and Power —America and Europe in the New World Order" ("Do Paraíso e do Poder —América e Europa na Nova Ordem Mundial").

Mas condescendência imperial continua a ser a marca do texto de Kagan. Talvez aí, e não tanto na qualidade do pensamento histórico ou da argumentação, estejam tanto seu interesse como o motivo da sua repercussão. O ensaio pode ser visto como uma longa "carta às províncias": um escriba-funcionário imperial explica aos aliados e ao resto do mundo a natureza da nova prepotência americana.

Depois do final da Guerra Fria, os EUA teriam se voltado para as tradições de sua política externa. Tal linha de força da política americana é explicada mais ou menos nos mesmos termos por Kupchan. Os Estados Unidos têm uma forte tradição, que data desde os pensadores da independência e da Constituição do país (os "founding fathers"): o isolamento dos problemas externos, um impulso que pode bem ser reforçado pelos crescentes custos do engajamento na política global. Os americanos também têm aversão histórica a instituições multilaterais, as quais comprometem a liberdade da iniciativa unilateral, argumenta Kupchan.

Segundo Kagan, a "Estratégia de Segurança Nacional", anunciada pelo governo Bush em setembro de 2002, não representa apenas o espírito da direita da América profunda no poder. Teóricos e executores da política externa americana são predominante realistas, diz, e coube também a eles levar os EUA a um nacionalismo mais estreito, que, no fundo, não seria muito diferente daquele de Truman, Reagan ou Clinton.

No entanto, Kagan acredita que seu país não abandonou o "universalismo nacionalista tipicamente americano", a forma mais "esclarecida de defesa do interesse nacional". Os Estados Unidos seriam um império compassivo, para parafrasear o "conservadorismo compassivo" da plataforma eleitoral de Bush Junior. "Os Estados Unidos são uma sociedade progressista e liberal. Acreditam no uso da força como um meio de difundir os princípios de uma civilização liberal e de uma ordem mundial liberal", afirma Kagan.

Mas, ainda assim, a generosidade dessa curiosa "realpolitik compassiva" dos Estados Unidos, que permaneceu incólume na década seguinte à queda da URSS, agora começa a declinar. A verdadeira "normalidade" do pós-Guerra Fria significa menos concessões à opinião pública internacional, menos deferência com os aliados, mais liberdade para agir. Nesse contexto, o conceito de "Ocidente" deixa de ser um princípio orientador da política externa tanto dos EUA (que adotou o realismo nacionalista) como da Europa, que estabeleceu a União Européia como prioridade.

Para os Estados Unidos, voltou a ser importante reafirmar seu "destino manifesto", o seu "excepcional lugar na história", a convicção de que "seus interesses e os do mundo são os mesmos" e que os Estados Unidos são uma "nação indispensável". Tal visão pode ser "ridicularizada ou lamentada. Mas não deveria ser posta em dúvida", como que alerta Kagan.

"É hora [pois] de começar a parar de fingir que os europeus e os americanos partilham uma visão do mundo comum ou mesmo que vivem no mesmo mundo." Nos limites da sua confederação, a União Européia vive na pós-história, num "paraíso pós-moderno kantiano" de paz, cooperação, normas internacionais, diplomacia e relativa prosperidade. Mais, os europeus acostumaram-se à idéia de que, caso surjam ameaças à sua segurança ou à ordem mundial, os EUA farão algo a respeito.

"Os americanos são "cowboys", os europeus gostam de dizer. E há verdade nisso", escreve Kagan. Os Estados Unidos continuam presos ao pântano da história, "exercendo o poder em um mundo hobbesiano, anárquico, onde as leis e normas internacionais não são confiáveis e onde a verdadeira segurança e a defesa e a promoção da ordem liberal ainda dependem do uso do poder militar".

A relativa fragilidade da Europa fez com que o interesse europeu se concentrasse em construir um mundo onde a força militar e o "hard power" tivessem menos importância do que "soft power" e a força econômica, uma ordem mundial em que a lei internacional e as instituições internacionais tivessem mais peso que Estados poderosos, em que todas as nações tivessem direitos iguais. Tal atitude, diz Kagan, é historicamente típica dos países mais fracos. Mas a "lógica geopolítica" determina que os americanos tenham menos interesse que os europeus no multilateralismo. Para os europeus, o Conselho de Segurança da ONU é um substituto do poder que lhes falta.

Nas idéias de Kagan, quase não parece haver espaço para ameaças à hegemonia dos EUA. A tese de que os europeus possam retornar ao status de grande potência internacional seria inviável. Para que deixasse de sê-lo, teriam de estar dispostos a gastar menos em programas sociais e mais em tecnologia militar. A tese do livro de Kupchan, porém, é justamente que a Europa já procura se reerguer.

"A era americana está viva e forte, mas a ascensão de centros de poder alternativos e o declinante e unilateralista internacionalismo dos EUA vão fazer com que chegue ao fim esse predomínio na medida em que o novo século avance."

"Globalização é americanização", sublinha Kupchan. Os EUA ora controlam militarmente potenciais conflitos em vários continentes; dominam as instituições financeiras e comerciais internacionais; ainda articulam a resolução da maioria das crises políticas e econômicas. Mas tal poder chegou ao pico e ao longo do século será confrontado pela Europa e talvez pela Ásia.

Se, para Kagan, o domínio e a orientação histórica da política externa americanos são claríssimos, para seu colega Kupchan, os Estados Unidos estão perdendo uma oportunidade sem paralelo de dar forma à essa provável transição para um mundo novamente multipolar. "Os Estados Unidos são uma grande potência à deriva, como tem ficado claro pelo seu comportamento contraditório e incoerente". Tal incoerência, para Kupchan, ficou evidente nas idas e vindas da política de Bush Senior, Clinton e Bush Junior em relação a intervenções militares na Bósnia, Kosovo e África; na aproximação com a Rússia e, ao mesmo tempo, na expansão da Otan para o Leste Europeu; no recuo em relação ao acordo ambiental de Kyoto; nas idas e vindas das negociações de paz na Palestina.

No mundo unipolar pós-Guerra Fria, a hegemonia americana vai provocar mais unilateralismo e negligência com a segurança global, do que decorrerá mais tensão e uma nova era de rivalidade geopolítica. De resto, o fim do período de crescimento econômico dos anos 90 vai tornar relativamente mais custoso o engajamento dos EUA na política global, com o subsequente reforço do seu isolacionismo.

Apesar do seu otimismo quase apoteótico, Mandelbaum compartilha com Kupchan (e em oposição a Kagan) o receio, ainda que em tom bem menor, de que podem aparecer tais fissuras na Pax Americana.

O apoio que os governos dos países centrais deram aos EUA após o 11 de setembro mostra que não há rival sério para "as idéias que conquistaram o mundo" e para a "teoria liberal da história". Nos países do "núcleo" (América do Norte e Europa), prevaleceria a "teoria liberal da história": a democracia tende a criar políticas externas de paz, e o funcionamento do mercado, a maneira mais eficaz de gerar riqueza, tende a promover, com o tempo, a democracia. Assim, tanto a boa política interna (democracia) como a externa (paz) dependem, fundamentalmente, da economia, da economia de livre mercado.

Tais idéias, acredita Mandelbaum, foram propagandeadas de maneira articulada pela primeira vez pelo presidente americano Woodrow Wilson, logo após a Primeira Guerra Mundial. Wilson foi também o proponente da Liga das Nações, a primeira e ainda mais fracassada versão da ONU.

Os Estados Unidos são responsáveis pela defesa e sustentação das instituições globais e práticas que incorporam essa "tríade wilsoniana". As maiores ameaças à "tríade" seriam: Rússia e a China; o risco de colapso econômico no "núcleo"; a crescente disparidade de riqueza entre países do "núcleo" e da periferia. Mas a primeira e maior ameaça seria ainda a soberba dos Estados Unidos e seu desdém da cooperação global.

Kupchan propõe que se previna ou atenue a tensão que sobrevirá com a nova multipolaridade e com o "renascimento da história". O realismo na política externa deveria ser temperado com "idealismo": crença na razão, na lei, em valores e instituições que possam domar o poder material e fazer com que o futuro seja menos sangrento que o passado. Trata-se de uma visão semelhante à dos "frágeis europeus" que vivem no paraíso de Kagan. Para Kagan, a lógica geopolítica e o realismo determinam que os EUA adotem mais e mais o unilateralismo, o que tende a minar os fundamentos da "teoria liberal da história" de Mandelbaum. Estejam certos Kupchan/Mandelbaum ou Kagan, o resultado desse sistema de equações geopolíticas parece ser apenas mais tensão no panorama internacional.

Vinicius Torres Freire, 37, é jornalista.

Para consultar:
- "Of Paradise and Power: America and Europe in the New World Order", de Robert Kagan (Knopf, 2003, 103 págs., US$ 18)
- "The End of the American Era: US Foreign Policy and the Geopolitics of the Twenty-First Century", de Charles A. Kupchan (Knopf, 2003, 391 págs., US$ 27,95)
- "The Ideas that Conquered the World: Peace, Democracy, and Free Markets in the Twenty-first Century", de Michael Mandelbaum (Public Affairs, 2002, 496 págs., US$ 30)

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