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29/04/2003 - 03h14

Inédito: A construção da escrita em Graciliano

da Folha de S.Paulo

Graciliano Ramos começa a ter sua obra reeditada nos 50 anos de sua morte. A seguir, trechos do novo posfácio de "S. Bernado", de Godofredo de Oliveira Neto. Leia abaixo trechos do posfácio. Para lê-lo em sua versão integral, clique aqui.

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Fábio Machado
'S. Bernardo' é o segundo romance de Graciliano Ramos, lançado em 1934, um ano após a publicação de 'Caetés'. A crítica o considera a mais importante obra de ficção do movimento modernista envolvendo o regime fundiário e os conflitos sociais no Nordeste brasileiro. 'S. Bernardo' firmou Graciliano Ramos como um dos maiores romancistas de toda a literatura brasileira. A linguagem despojada do escritor é comumente comparada —numa visão impressionista e sem embasamento teórico— à aridez do sertão e ao reduzido vocabulário do sertanejo, personagem que mobilia a sua narrativa. De fato, são por todos sobejamente conhecidas, além da nobreza e da parcimônia com que Graciliano faz uso do idioma, as preocupações do autor com o uso da língua portuguesa.

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A história de 'S. Bernardo' se passa na década de 30. O narrador, Paulo Honório, de 50 anos, tenta revisitar dramas da sua vida e conflitos internos que até o momento em que o livro era escrito permaneciam inexplicáveis. Nem a fazenda São Bernardo, que Paulo Honório comprou por preço irrisório, nem a professora Madalena, a quem contratou para alfabetizar as crianças do seu empreendimento rural e com quem acaba se casando, deram-lhe o sossego que tanto buscava. Resta-lhe a escrita; talvez ela lhe devolva a paz desejada. Mas os fatos e o tempo não voltam. Há, assim, em função desse tipo de narrativa, uma constante transição entre passado e presente já que o narrador, além de nós, leitores, é também o destinatário da história que ele tenta reeditar.

A referência a um projeto, a um imaginário, avulta logo no primeiro parágrafo, na frase 'antes de iniciar este livro, imaginei construí-lo pela divisão do trabalho'. Essa divisão do trabalho refere-se à divisão social das tarefas. Para Paulo Honório, a língua não constitui um território homogêneo, mas, ao contrário, ela se decompõe em linguagens especializadas: 'Padre Silvestre ficaria com a parte moral e as citações latinas; João Nogueira aceitou a pontuação, a ortografia e a sintaxe; prometi ao Arquimedes a composição tipográfica; para a composição literária convidei Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, redator e diretor do Cruzeiro. Eu traçaria o plano, introduziria na história rudimentos de agricultura e pecuária, faria as despesas e poria o meu nome na capa'.

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No primeiro capítulo o leitor enxerga com todas as letras a conflituosa relação entre a capacidade do narrador de imaginar o livro e a sua efetiva realização através da escrita. Um dos convidados para construir o livro 'S.Bernardo' não entendeu o recado. 'Vá para o inferno, Gondim. Você acanalhou o troço. Está pernóstico, está safado, está idiota. Há lá ninguém que fale dessa forma!'. Se Gondim é pernóstico é tanto pelo seu estilo —inadequação entre a escrita e a coisa a dizer— como também pela inadequação entre o que se diz e a experiência que se quer transmitir. A língua escrita não consegue dar conta do ímpeto de contador de Paulo Honório: 'João Nogueira queria o romance em língua de Camões, com períodos formados de trás para diante. Calculem'. A norma lusa é caricaturada, comparada à língua de Camões. É o peso da norma clássica impedindo que o narrador passe para a forma escrita a história que tem em mente. Resta a língua falada. A oralidade, aparentemente, é a única modalidade linguística que permitiria ao narrador levar a cabo a sua tarefa. A escrita, entretanto, possui exigências que a afastam contínua e sistematicamente da oralidade. Graciliano não está procurando propriamente uma realidade oral, mas buscando aproximar a carga simbólica da escrita dos constituintes simbólicos da prática corrente, que são, esses, redutíveis a fórmulas orais. O essencial da história que o narrador tem na memória —ou na imaginação— não pode ser compartilhado. Aquela realidade, inevitavelmente encharcada de fantasia, só poderá ser descrita pelo próprio Paulo Honório.

Assim, em consequência da dificuldade em dominar a língua escrita, vale dizer as regras da arte, o empreendimento-livro 'S. Bernardo' parece ameaçado. A arte, porém, é imperativa. Paulo Honório ouve o pio de uma coruja. Nesse momento o ato de escrever é exigido não pela técnica, não pelo livro, mas por um elemento exterior e mais profundo. A escrita, enquanto técnica, é relegada para plano inferior, ao passo que a cena passa a ser ocupada por uma motivação intransmissível. O impulso para a escrita é determinado por um elemento exterior, numa atmosfera noturna, onde o homem perde um pouco as fronteiras do cotidiano e do racional, e se torna mais permeável aos signos da natureza. Paulo Honório, então, já não faz cálculos ligados à escrita, mas é antes a força da pulsão que o arrasta para essa escrita. O ato se torna isento de cálculo; gratuito, como um ato de autêntica criação. O narrador confessa que é a coruja a desencadeadora do processo narrativo. Ave noturna, animal pressago, portador de elementos conotando a morte ou a tragédia mas também a possibilidade do conhecimento.

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Godofredo de Oliveira Neto, 52, é professor de Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e é autor de "Ana e a Margem do Rio" (Record, 2002) e "Marcelino Nanmbrá, o Manumisso" (Nova Fronteira, 2000), entre outros.

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