Folha Online sinapse  
29/04/2003 - 03h22

Estudando sob o holofote

MARILI RIBEIRO
free-lance para a Folha de S.Paulo

Era uma vez uma menina chamada Narizinho. Ela era muito viva e fazia mil coisas ao mesmo tempo. Certo dia, porém, estava tão atrapalhada com seus afazeres que nem teve tempo de tirar o uniforme da escola antes de entrar no Sítio do Pica-Pau Amarelo. Noutro dia, foi a mesma coisa, até que a falta de rotina se transformasse, ela própria, em rotina.

Lara Rodrigues, atriz: "Sou parecida com a Narizinho: não sou medrosa e gosto de ler"
Narizinho, a famosa personagem de Monteiro Lobato, é Lara Rodrigues, 12, uma menina muito viva que faz mil coisas ao mesmo tempo. Bem, pelo menos duas coisas: ela estuda e trabalha. Estuda na sexta série do Colégio St.Patrick's, no Rio de Janeiro, e trabalha, claro, no "Sítio do Pica-Pau Amarelo", da TV Globo.

A escola e o estúdio são novidade para Lara. Mineira de Juiz de Fora, ela foi obrigada a mudar de colégio depois de passar num teste que avaliou mil candidatas para o papel. "Sou parecida com a Narizinho: não sou medrosa e gosto de ler", diz.

No Rio, o ritmo da atriz-estudante é acelerado. "Os atores têm apenas uma folga semanal, nem sempre aos domingos", conta a tia RosaRodrigues, que, com a da mãe da menina, Cristiane Rodrigues, se reveza no Rio para cuidar de Lara. Além da carga pesada, o horário das gravações é anunciado na véspera, o que dificulta qualquer planejamento escolar. Lara se considera boa aluna, mas admite: "Só fico preocupada quando tenho muita lição de casa". Nem sempre ela consegue fazer o trabalho escolar a tempo.

A promessa de uma carreira glamourosa retira a conotação negativa da expressão "trabalho infantil". Mas educadores não têm dúvida de que a precocidade em atividades artísticas e esportivas tem um custo que, dependendo do aluno e das condições, pode se refletir no histórico e na vida escolares.

Kayky Brito, ator: "Gosto de estudar, pretendo fazer direito, marketing ou engenharia"
A maioria das crianças e adolescentes que fazem parte desse mundo não costuma reconhecer que a dupla jornada prejudica os estudos. É o caso de Kayky Brito, 14, o vampirinho Zeca da novela das sete da TV Globo, que se define como um estudante bem razoável. "Gosto de estudar, pretendo fazer direito, marketing ou engenharia", afirma, abrindo o leque de interesses, o que é típico de um estudante no último ano do ensino fundamental.

Pergunte a ele, porém, o que mais o estimula. Ele dirá que é o aprendizado fora das salas de aula. "Percebo coisa importantes por meio de meus personagens. Com o Fabrício [que representou na série "Chiquititas", do SBT] e o Marcelo [da peça "Marcelo, Marmelo, Martelo", de Ruth Rocha], vi que ninguém ganha vivendo só para si", afirma. "Eles são meninos ricos, egoístas e acabam afastando os outros. O bom da vida é a gente se relacionar com todo mundo", conclui.

A carreira dos filhos costuma contar com o incentivo dos pais. Mãe de Kayky e Sthefany, que também é atriz, Sandra Brito não só apóia o que considera "vocação" dos filhos —controlando a congestionada agenda de compromissos deles— como também não vê prejuízo no fato de eles terem trocado de escola nove vezes nos últimos anos (a família, de São Paulo, mudou-se para o Rio para ficar próxima dos estúdios da Globo). "Nunca quis que meus filhos fossem cientistas. Quero que sejam felizes", argumenta. "O trabalho na TV não é um peso para eles, é um prazer. Eles se divertem e não trocam a vida que têm por uma tarde na praia."

Privados do convívio com seus pares, os adolescentes que passam grande parte do dia sob os holofotes abrem mão de experiências significativas, na opinião da pedagoga Teresa Cristina Rego, professora da Faculdade de Educação da USP. "A precoce preocupação com a fama, em sair-se bem individualmente, numa fase em que deveriam estar tomando contato com os ideais do conhecimento acumulado pela humanidade, significa estimular valores egoístas, o que deverá causar impacto no futuro desses adolescentes e afetar a convivência em sociedade", afirma. "Independentemente da qualidade do projeto pedagógico, a escola deixa contribuições expressivas na formação do indivíduo", afirma a professora.

A corrida por um lugar ao sol nas passarelas fashion talvez seja a faceta mais cruel de perdas aceleradas na formação escolar. Se os jovens atores ou esportistas conseguem conciliar o aprendizado regular, mesmo com troca de escolas e constantes faltas às aulas, as modelos rapidamente abrem mão dos estudos em função das necessidades de construir uma carreira. As viagens pelo circuito Elizabeth Arden (Nova York-Londres-Paris-Milão) exigem ausências prolongadas do Brasil. "O aprendizado deixa marcas que promovem o desenvolvimento de uma pessoa. Ninguém nasce pronto, logo todos são produto do que absorvem. As modelos sem qualquer orientação escolar correm o risco de ficar à mercê de valores fúteis", diz a educadora Rego.

Juliana Anelli Azenha, modelo: "Tentei negociar com a escola pública para repor as aulas na volta, mas não aceitaram"
Dona de um sorriso ingênuo, Juliana Anelli Azenha da Silva, 14, com 1,76 m e 49 kg, veio de Barretos (SP) para o disputado concurso da Riachuelo. Ficou em segundo lugar, entrou para o casting da agência de modelos Mega, fez vários desfiles na última edição da "São Paulo Fashion Week", posou para a campanha do estilista Reinaldo Lourenço e para os catálogos das etiquetas G e Carlota e encerrou a maratona de estréia embarcando em março para uma temporada de desfiles no exterior.

"Tentei negociar com a escola pública na qual me matriculei para repor as aulas na volta, mas não aceitaram, já que vou ficar fora uns três meses", conta uma desanimada Juliana, que tinha planos de se tornar uma artista plástica. Mesmo se dizendo consciente de que a carreira é disputadíssima, curta e repleta de sacrifícios —ela mesma teve de desfilar com um escarpim 35 em pés que normalmente calçam 39—, a novata se diz preparada e acredita que a "escola da vida de modelo" vai suprir suas necessidades mais imediatas de aquisição de conhecimento. Com o dinheiro que vier a ganhar, Juliana aposta que encontrará uma instituição particular de ensino com horários mais flexíveis, compatíveis com a agenda de uma top.

Ornella Ortile: "Gosto de ler, tenho sempre um livro por perto e isso ajuda nos estudos"

Não está de todo errada. A colega Ornella Ortile, 16, há dois anos na batalha pela vida de modelo desde Santa Catarina e há apenas três meses em São Paulo, também na agência Mega, conta que sempre teve colaboração dos colégios em que estudou em sua cidade natal. "A escola particular é mais adaptável", explica. "O padrão de faltas de 20% das aulas não é tão rigoroso. Faltei 33% no último período e, mesmo assim, concluí o ano. Como sempre tive boas notas, deixaram-me repor com trabalhos e provas em outras datas."

Com planos de fazer faculdade de moda, Ornella cursa o último ano do ensino médio. "Gosto de ler, tenho sempre um livro por perto e isso ajuda nos estudos", diz. No dia da entrevista para a Folha, carregava na bolsa um manual de auto-ajuda: "Seus pensamentos podem mudar sua vida".

Dérik Stanzione Oliveira, 5, que já fez mais de 70 trabalhos, entre fotos, comerciais de TV e novelas

A vida em frente às câmeras é, com frequência, uma opção dos pais. Dérik Stanzione Oliveira, 5, já conta em seu histórico profissional 70 trabalhos —entre fotos, comerciais e até novelas. Atualmente, ele é o Nico de "A Pequena Travessa", do SBT. Dérik entrou para vida artística por um impulso materno aos dois anos e meio. Alessandra Nielsen Stanzione, 31, decidiu que queria ver seu filho, "um bebê lindo", na telinha. Procurou uma agência de modelos e o inscreveu. "Às vezes, fico preocupada com o montão de texto que ele tem de decorar. Como não foi alfabetizado, eu leio para ele e nem preciso repetir três vezes, que Dérik reproduz tudo direitinho. Acho que essa facilidade vai contribuir para seu aprendizado na escola." Por enquanto, o garotinho frequenta a pré-escola com o mesmo prazer com que costuma divertir-se nos estúdios de gravação, segundo sua mãe. O cachê que recebe, entre R$ 300 e R$ 2.500, ela deposita na poupança para ele usar no futuro.

Se há mães que impulsionam seus filhos em uma direção, há outras que são impelidas por eles. Geni Matias da Silva Hipólito nunca imaginou ver a filha envolvida com qualquer atividade esportiva. "Ela me matava de medo quando começava a imitar a Luiza Parente (ginasta que participou da Olimpíada de Seul-88), que via na televisão, no sofá da sala", conta. A insistência da garotinha, com pouco mais de cinco anos, fez a mãe inscrevê-la no Sesi. Daniele Hipólito trocou o sofá pelas barras e acabou trazendo para o Brasil duas medalhas olímpicas. De poucas palavras, Daniele, 18, mantém o rigor dos treinos na Casa dos Atletas, em Curitiba (PR), mas não deixa de lado a universidade. Ela cursa o primeiro ano de educação física na Faculdade Dom Bosco, no Paraná. "Conciliar as atividades é difícil. Exige sacrifícios, mas nunca cogitei abandonar os estudos", diz ela, que mantém o ritmo de sete horas de treino por dia.

Os especialistas em educação não se preocupam tanto com o conteúdo eventualmente perdido. O que é impossível de recuperar é o convívio escolar, uma experiência única de enraizamento social e de desenvolvimento da identidade própria dessa etapa da vida. A psicanalista freudiana Anna Veronica Mautner, colunista do Folha Equilíbrio, condena o foco apenas na utilidade prática do ensino. "Aquela aula chata de geometria descritiva, que a gente não sabe como vai usar um dia, está também ajudando a pensar", afirma.

A professora Maria Helena de Souza Patto, do IP-USP (Instituto de Psicologia), procura entender o fenômeno da atividade profissional precoce em famílias que não precisariam da renda extra. "A escola está em crise, e a classe média experimenta uma transformação: o diploma, tão valorizado no passado, perde importância diante de um desemprego cada vez mais estrutural e de uma competição no mercado de trabalho cada vez mais feroz", afirma.

     

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