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29/04/2003 - 03h24

Gilson Schwartz: Da esperança ao medo, o mundo recomeça

GILSON SCHWARTZ
colunista da Folha de S.Paulo

Os fervores religiosos e os tremores místicos foram ganhando espaço. A solução parecia perfeita para um tempo que, se não chegou a ser uma era de vazio ideológico, foi certamente um período de fadiga intelectual sucessiva de esquerdismos e direitismos. Dos livros de auto-ajuda à proliferação de gurus na administração de empresas, passando pela adesão das massas às novas religiões, a mágica dominou os espíritos no mesmo tempo em que a ciência dava novos saltos.

A política, se não desapareceu, diluiu-se na proliferação das diferenças e dos localismos. Afetando a radicalidade, intelectuais e filósofos partiram para definições da política sem representação, retomando a tradição anarquista de propor a ação direta como única possibilidade transformadora saudável. As redes digitais criaram a ilusão de que ser indivíduo bastaria. O resto tornou-se apenas isso: um resíduo no horizonte longínquo, percebido ora como sinal de vida de alguma minoria, ora como ruído difuso produzido pelas massas e multidões.

Na diluição das hierarquias, a que mais se destacou foi a liquefação da família, paradoxalmente destruída em nome do amor e da saúde sexual. Na economia, a crença no poder auto-restaurador dos mercados foi gradualmente substituída por uma confiança genérica na capacidade de cada indivíduo ou microempresa de criar seu próprio mercado. Fantasias utópicas foram construídas em torno de estratégias pós-modernas de organização de clientelas, nichos e conversações.

A prioridade era a libertação de cada um da dominação no varejo, da dominação de uns sobre os outros, pois a história encalhou no atacado, e a dominação global se tornou, de tão presente, invisível.

O ambiente ficou carregado de contradições cada vez mais explosivas. Tudo o que dava esperanças de progresso, ciência e tecnologia passou a ser fonte de medo, incerteza e desregulação.

Se, num dado momento, o Brasil parecia tomado pela confiança no poder da esperança de vencer o medo, este ressurgiu no país e no mundo com todas as suas garras e dentes afiados. Sociedade global tornou-se sinônimo de risco sistêmico.

Sociólogos captaram esse medo que brota do intestino da pós-modernidade: a ciência tornou-se cada vez mais necessária, porém cada vez menos suficiente para nos oferecer uma definição socialmente legítima da verdade. Ulrich Beck (alemão) e Anthony Giddens (inglês) elaboraram uma "sociologia reflexiva".

Vivemos numa "sociedade de risco" e "em risco": ao contrário de todas as épocas anteriores, tornou-se impossível atribuir as ameaças a causas externas. Essa sociedade se confronta consigo mesma, mas ainda não encontrou os meios para se enxergar.

Gilson Schwartz, 43, é diretor acadêmico da Cidade do Conhecimento do Instituto de Estudos Avançados da USP (www.cidade.usp.br) e autor de "As Profissões do Futuro" (Publifolha). Está lendo "The Guide for the Perplexed" (Dover Publications), escrito por Moisés Maimônides no século 12 sobre os conflitos entre religião e ciência.
E-mail: schwartz@usp.br

     

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