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29/04/2003 - 03h26

Verbete: Risco (e ganho) de abreviar a evolução

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

Reprodução
Modificar espécies de animais e vegetais em benefício próprio não é exatamente novidade para o homem. Qualquer comparação entre um poodle e seu parente próximo, o lobo, deixa isso claro. Por que, então, o temor e a polêmica que cercam os famigerados transgênicos (também conhecidos como OGMs ou organismos geneticamente modificados)?

A raiz dessa desconfiança está no fato de que a tecnologia transgênica consegue dar uma rasteira em milhões de anos de evolução, que estabeleceram que os genes de um ser humano e os de uma planta, por exemplo, não se misturam, exceto em circunstâncias muito raras. Com a técnica do DNA recombinante, como a costumam chamar os cientistas, é possível virar essa lógica de ponta-cabeça. Bactérias produzem proteínas de vírus, plantas secretam toxinas de bactérias e órgãos de porcos podem ser transplantados para pessoas sem que (teoricamente) haja rejeição.

Embora às vezes seja traçada a distinção entre organismos transgênicos (que receberam material genético de uma espécie diferente) e geneticamente modificados (que ganharam genes da mesma espécie à qual pertencem), a mágica usada para criar ambos é basicamente a mesma. Esse truque permaneceu desconhecido por 20 anos depois da descoberta da estrutura do DNA. Foi só em 1973 que os cientistas norte-americanos Stanley Cohen e Herbert Boyer conseguiram inserir um gene de sapo no DNA de uma bactéria, de forma que o microrganismo conseguisse produzir a proteína de sapo cuja receita estava contida naquele gene.

Não demorou muito para que a técnica gerasse a primeira patente concedida na história pela criação de um ser vivo —uma bactéria modificada pelo cientista indiano Ananda Chakrabarty, da empresa General Electric, para digerir petróleo. De lá para cá, a polêmica cercando a invenção só aumentou, em especial quando ela foi abraçada com avidez por gigantes da biotecnologia, como a Monsanto, para criar variedades transgênicas de plantas que respondem por boa parte da alimentação humana e animal no planeta, como arroz, soja e trigo.

As técnicas usadas hoje para inserir um gene estranho em plantas incluem a transferência por meio de bactérias (que fazem coisa parecida de vez em quando na natureza) ou com pequenos projéteis de ouro carregados de DNA. Embora as mais diversas cultivares já tenham sido transformadas dessa forma, dois tipos de alteração se firmaram desde o começo dos anos 90 como os preferidos pelos agricultores.

Um deles é o celebrizado pela soja Roundup Ready, da Monsanto. Essa variedade é resistente ao herbicida Roundup (glifosato), fabricado pela mesma empresa, por produzir uma substância que atua como antídoto contra o veneno. Dessa forma, o agricultor pode pulverizar a plantação com o herbicida sem temer que a soja morra junto com as ervas daninhas que ele deveria combater. É essa variedade (importada legalmente da Argentina e apelidada de "soja Maradona") que tem invadido as plantações do Rio Grande do Sul. A colheita deste ano, sabidamente cheia de soja transgênica, foi legalizada por uma medida provisória do governo Lula no fim de março.

O segundo tipo mais comum de planta transgênica é o que produz seu próprio veneno, ao invés de um antídoto. Explica-se: em variedades como o milho Bt, a planta recebeu um gene que contém a receita para a produção de uma toxina da bactéria Bacillus thuringiensis. O desavisado inseto que decidir comer a planta modificada vai ser literalmente digerido por dentro, já que a toxina destrói o sistema digestivo do animal —permitindo que os agricultores economizem no inseticida, que já vem embutido na planta.

A atitude dos grandes produtores de grãos do planeta em relação aos transgênicos tem sido receptiva, apesar de exceções importantes, como o Brasil e a União Européia. De acordo com o Isaaa (Serviço Internacional para Aquisição de Aplicações Agribiotecnológicas, na sigla em inglês), a área total de plantas transgênicas no planeta correspondia a 58,7 milhões de hectares em 2002 (o equivalente a duas vezes e meia o território do Reino Unido) depois de um aumento de nada menos que 35 vezes de 1996 a 2001.

A lavoura de soja em países como Estados Unidos (54%) e Argentina (100%) está dominada pelas plantas resistentes ao glifosato, enquanto grandes produtores do Terceiro Mundo, como China e Índia, estão adotando com entusiasmo versões Bt de milho e algodão. No Brasil, a produção comercial está proibida por uma liminar que exige, antes, a regulamentação da venda de transgênicos e a realização de um estudo de impacto ambiental.

Os defensores da tecnologia transgênica costumam apontar que o uso de OGMs já se mostrou seguro há muito tempo, mas a situação é um pouco mais complicada. Quando se trata do uso de bactérias modificadas para produzir substâncias de interesse humano, muito menos discutido que as plantas transgênicas, pelo menos um caso é emblemático: o do suplemento alimentar triptofano, que matou 37 pessoas nos EUA em 1989. O motivo do problema é que, junto com o suplemento, as bactérias alteradas com o auxílio de radiação passaram a produzir uma toxina que causava dores musculares e o aumento de glóbulos brancos no sangue.

Embora nenhuma tragédia do tipo tenha ocorrido graças a cultivares transgênicas, o grande problema é saber como essas plantas afetarão o ambiente e a saúde humana a longo prazo. No caso das variedades Roundup Ready, ervas daninhas resistentes ao herbicida já estão se tornando um problema nos EUA. E estudos mostraram que as plantas Bt podem causar estragos indiscriminadamente nos insetos de uma região, pondo em perigo um equilíbrio ecológico do qual esses animais, os mais diversificados do planeta, são parte importante.

Outro temor de cientistas e ambientalistas é que as características transgênicas acabem se espalhando das plantas domésticas para seus parentes selvagens, com consequências desastrosas —imagine, por exemplo, uma erva daninha que ganhe forte resistência a herbicidas. Por fim, uma possibilidade teórica que não pode ser descartada é que bactérias, notórias pela sua capacidade de adquirir e transmitir genes alheios (o que se costuma chamar de transferência lateral), distribuam os transgenes de forma imprevisível entre si mesmas e outras variedades de planta.

Por tudo isso, um pouco de cautela com os efeitos de longo prazo da tecnologia transgênica é tão salutar quanto se manter aberto aos benefícios potenciais dela, que são muitos. Se a idéia é brincar com a evolução, é melhor conhecer primeiro as regras do jogo.

Reinaldo José Lopes, 24, é jornalista e colaborador da Folha de S.Paulo e das revistas "Pesquisa Fapesp" e "Scientific American". Já teve alguns pesadelos com transferência lateral de genes de repolho para o seu trato intestinal.

     

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