Folha Online sinapse  
27/05/2003 - 02h50

Leituras Cruzadas: Ética empresarial e outros paradoxos

FLOYD NORRIS
do "The New York Times Book Review"

Existe um aspecto de modismo no fascínio que os Estados Unidos vêm demonstrando pelos escândalos corporativos. O caso Enron foi uma história espantosa de soberba, cobiça, corrupção e incompetência. Apesar disso, o impacto de sua queda teria sido muito menor alguns anos atrás, quando as Bolsas de Valores ainda estavam em alta.

France Presse
Manifestante protesta contra o Fórum Econômico Mundial e o escândalo da empresa norte-americana Enron, em Nova York

Assim como o musical "Chicago" —que, com seu cinismo, perdeu espaço para atrações mais alegres em 1975 e fez sucesso um quarto de século mais tarde—, o colapso da Enron também ganhou mais visibilidade devido às circunstâncias: a derrocada ocorreu quando os investidores já tinham perdido muito dinheiro e estavam à procura de um culpado. Era isso o que importava, e não a atitude da empresa, ou eles já teriam se manifestado anteriormente, no episódio em que a Enron fora acusada de tirar proveito financeiro de uma crise energética na Califórnia.

O resultado do escândalo foram as ações abertas no Congresso americano e na SEC (sigla em inglês para Comissão de Valores Mobiliários) para tornar o sistema financeiro menos propenso aos abusos.

Jeffrey Skilling, o antigo presidente-executivo da Enron, disse ao Congresso que não se podia esperar dele que soubesse que as demonstrações financeiras da empresa eram falsificadas. "Não sou contador", repetiu por diversas vezes. Essa tática ainda poderá livrar sua cara em termos legais, mas representou tal afronta à SEC que rapidamente foram aprovadas normas exigindo que os principais executivos de empresas ofereçam garantias às demonstrações financeiras.

Sherron Watkins surgiu como a figura mais próxima de uma heroína no caso Enron. Foi ela quem se queixou internamente sobre a contabilidade absurda e enganosa. Executiva de médio escalão que já tinha trabalhado em diversos setores da empresa, Watkins não acertou todos os detalhes, mas seu temor de que ''vamos implodir numa onda de escândalos contábeis'' se mostrou profético.

"Power Failure - The Inside Story of the Collapse of Enron", de Mimi Swartz e Sherron Watkins, 386 págs., Doubleday, US$ 26
No livro "Power Failure" [jogo de palavras que significa "queda de energia" ou, literalmente, "fracasso do poder"], Watkins escreve em colaboração com Mimi Swartz, editora-executiva da publicação "Texas Monthly", lançando um olhar fascinante sobre a Enron. O livro, na realidade, é de Swartz, tanto que as referências a Watkins são feitas na terceira pessoa.

A ausência de fontes visíveis para informações às quais Watkins não teria como ter tido acesso é frustrante, em alguns momentos. Mas isso não impede o livro de prender totalmente a atenção do leitor, que sabe que a Enron terminou falida, mas não sabe como era a vida no interior de uma organização que, quando chegou perto do fim, tinha adquirido o hábito de referir-se a si mesma como "a maior empresa do mundo".

A Enron emerge do livro como uma empresa que valorizava, acima de tudo, a capacidade de esconder as más notícias. Oferecia abonos, às vezes de milhões de dólares, quando se fechavam negócios. Os lucros previstos justificavam a remuneração extra. Não havia razão para saber se os planos dariam certo. A empresa pagava os abonos de qualquer maneira.

Quando as transações davam errado, elas podiam ser escondidas por meio de ilusionismo financeiro e, de qualquer maneira, os responsáveis por elas já estariam a caminho de novas transações e novos abonos. Ao que parece, o caminho mais rápido para se tornar astro ou estrela na Enron era criar um novo método de retratar as cifras de maneira positiva.

O cinismo interno era grande. A Enron tinha suas frases de efeito que transmitiam seus "valores e visões". "Quando dizemos que vamos fazer uma coisa, nós a fazemos", afirmava uma delas. Andrew Fastow, o principal executivo financeiro indiciado por sua participação no escândalo, criou seu próprio slogan: "Quando a Enron diz que vai arrancar até suas calças, ela arranca".

Seja como for, o fato é que Watkins sabia que a Enron estava apresentando cifras estranhas, digamos assim, muito tempo antes de começar a reclamar disso em público, mas, aparentemente, ela não se deu conta do grau de podridão que a empresa tinha atingido.

Quando a Enron estava de vento em popa, ela trabalhou em suas operações de banda larga, que praticamente não geravam receita, exceto as que inventava com alguns truques de contabilidade particularmente astutos —mas essa era a maneira que a Enron tinha encontrado para penetrar no cobiçado ramo das telecomunicações.

"No final de 2000, Sherron Watkins já estava bastante desanimada", diz o livro. "O departamento de banda larga não estava gerando dinheiro, mas perdendo, e muito. Graças a Deus que o resto da empresa está indo tão bem", ela pensava. Não estava, é claro. Ela teria desabado cedo ou tarde.

A outra baixa resultante do caos da Enron foi a Arthur Andersen, a firma de auditoria e consultoria cujas crias, incluindo Watkins, estavam presentes nos cargos financeiros da Enron e da firma que cuidava de sua contabilidade. Ela foi desativada depois que destruiu seus documentos relacionados à Enron e foi condenada por obstrução de justiça.

"Final Accounting - Ambition, Greed, and the Fall of Arthur Andersen", de Barbara Ley Toffler e Jennifer Reingold, 273 págs., Broadway Books, US$ 24,95
O livro "Final Accounting" [outra expressão com duplo sentido: pode ser "acerto de contas" ou, literalmente, "contabilidade final"] é um misto de "inside story" e relato sobre a "débâcle" da Andersen e seu colapso. Infelizmente, Barbara Ley Toffler, a autora, tinha deixado a Andersen dois anos antes de o escândalo Enron vir à tona e, além disso, ela não é auditora.

Toffler é consultora especializada em ética corporativa, algo que não parece ter existido em abundância na Andersen durante os poucos anos que ela passou por lá, tendo sido contratada como sócia depois que a Andersen concluiu que seria possível ganhar dinheiro prestando assessoria em ética a seus clientes. Parece que a Andersen achava que a oportunidade era maior no caso das empresas que enfrentavam problemas e estavam mais interessadas em dar a impressão de serem éticas do que em realmente agir com ética.

Escrito em colaboração com Jennifer Reingold, ex-editora da revista "Business Week", "Final Accounting" lança um olhar instigante e, às vezes, chocante sobre o ambiente reinante na Andersen, onde obediência e conformidade eram exigidas dos profissionais. Mas o leitor fica se perguntando até que ponto a Andersen era diferente de suas concorrentes, as grandes empresas de contabilidade sobreviventes, e Toffler não tem como responder à pergunta.

Mesmo assim, suas experiências como consultora lançam luz sobre a maneira casual com que as grandes empresas americanas muitas vezes vêem as questões éticas, como ela escreve numa anedota reveladora sobre a seguradora Prudential Insurance, para a qual dava consultoria ética antes de trabalhar na Andersen.

Em 1994, conta Toffler, justamente quando o ''The New York Times'' estava divulgando os problemas ocorridos na Prudential, Wick Simmons, um dos diretores da empresa, perguntou a ela: "'Quantas das coisas mencionadas no 'Times' nós já discutimos em suas sessões?' 'Todas', eu respondi. 'E sobre quantas delas nós já tomamos alguma providência?' 'Pelo que eu estou sabendo, nenhuma', respondi". Mas, depois que a divulgação dos problemas provocou ação regulatória e prejudicou os negócios da Prudential, ela escreve, a empresa finalmente tomou medidas para corrigir os problemas.

Os livros de Swartz e de Toffler procuram oferecer uma perspectiva histórica, mas nenhum deles tem propósitos tão amplos quanto "Infectious Greed" ["Ganância Infecciosa"], de Frank Partnoy. Professor de direito na Universidade de San Diego e autor de um livro anterior no qual recorda a época em que vendia derivativos para a Morgan Stanley, Partnoy traça uma história dos escândalos financeiros recentes, procurando mostrar o papel desempenhado pelos derivativos e pelos corretores de ética dúbia de Wall Street.

"Infectious Greed - How Deceit and Risk Corrupted the Financial Markets", de Frank Partnoy , 464 págs., Times Books/Henry Holt & Company, US$ 27,50
É um livro útil, que junta detalhes sobre escândalos semi-esquecidos dos últimos 15 anos. Partnoy mostra que compreende algumas das maneiras mais engenhosas com que Wall Street tratava o mercado de ações. Afinal, ele deu mais atenção do que a maioria dos jornalistas ao lobby que induziu o Congresso e os organismos reguladores a permitir que muita compra e venda de derivativos se fizesse em segredo, quase sem ser regulamentada.

Mas há momentos em que ele peca por descuido, como quando se engana quanto à data e à magnitude da queda do mercado acionário em 1987, e, às vezes, fica à mercê de suas fontes para conseguir informações atualizadas.

Seu argumento básico, porém, continua válido. Os derivativos (geralmente definidos como ativos financeiros cujo valor depende do valor de outro ativo) provocaram mudanças muito grandes no mundo financeiro, facilitando, em muito, a proteção dos riscos —e a especulação. Mas esse setor todo ainda é sujeito a muito pouca regulamentação, fato que enfurece Partnoy, que acha que não temos como saber para onde os riscos foram, graças à negociação secreta de derivativos.

"Por mais que se faça 'hedge' [operação para reduzir o risco de um negócio], quando a música pára de tocar, alguém fica segurando a batata quente na mão", diz ele, citando uma frase que William Donaldson teria dito em 1992, quando era presidente da Bolsa de Valores de Nova York. É algo que Donaldson, hoje presidente da SEC, faria bem em lembrar.

Floyd Norris, 56, é jornalista especializado em finanças do "The New York Times" desde 1999 e tem uma coluna semanal sobre o tema. Ele está no jornal desde 1988. Organizou e editou com sua mulher, Christine Bockelman, o "The New York Times Century of Business" (McGraw-Hill,1999). Mora no bairro do Brooklyn, em Nova York.

Tradução de Clara Allain.


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