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27/05/2003 - 03h00

Perfil: Um consultório no Xingu

JOÃO LUIZ VIEIRA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Mário é o companheiro de pescaria mais assíduo. O destino, em geral, é o rio Tietê, próximo ao município de Lins, onde vivem, a 450 quilômetros de São Paulo. Muitas vezes os dois ficam encarregados de levar o almoço para casa e, juram, não decepcionam. Mário, 12, diz que o maior peixe foi ele quem pescou: um jaú de 20 quilos. Quanto ao pai, Douglas Rodrigues, o menino não lembra que tenha capturado nada parecido.

Marcelo Soares/Folha Imagem
O médico sanitarista Douglas Rodrigues
Se não impressionou o filho à beira do rio, o mesmo não se pode dizer como profissional. Mário já sabe que, como o pai, quer ser médico. Só terá de decidir, mais tarde, entre cuidar de gente e de bicho. "A única certeza é que viverei da cura."

Rodrigues é conhecido em Lins e no Xingu. Em Lins, por preparar, como atestam seus amigos, a melhor paelha da cidade. No Xingu, por ser o principal responsável pelo trabalho de conscientização sanitária de 17 povos indígenas que se espalham pelos 30 mil quilômetros quadrados do Parque Nacional do Xingu, uma Bélgica dentro de Mato Grosso.

A pescaria, o maior de seus hobbies, é prática que herdou do convívio intermitente com a comunidade de lá. "Ele é o nosso papa. Conhece, de fato, as dificuldades de nossa gente", adianta-se o cacique Yefuka Kaiabi, 29, há cinco anos auxiliar de enfermagem do médico. "Devo minha formação a ele."

O médico sanitarista Douglas Rodrigues, 47, é o pai de Mário e o papa dos irmãos de etnia do cacique Yefuka. Um homem que resgatou o que se pode chamar de espírito da selva —que, até pouco tempo atrás, estava encarnado no corpo do sertanista Orlando Villas Bôas (1914-2002).

"Doutor, o senhor poderia dar uma espiada num índio aqui da aldeia, que está com febre?" A pergunta, feita em 1965 ao também médico sanitarista Roberto Baruzzi, 74, deu a largada ao projeto desenvolvido por Rodrigues no parque, o Distrito Sanitário Especial Indígena do Xingu, um dos 34 desse tipo existentes no país.

À época, Baruzzi viajava anualmente como voluntário para tratar das comunidades residentes às bordas do rio Araguaia. O vôo era realizado em aviões da FAB (Força Aérea Brasileira). Num desses acasos, o avião teve de desviar de percurso para resgatar um piloto e pousou no Xingu. Naquele momento, travou-se o contato entre Baruzzi e o índio doente. "Era uma doença respiratória qualquer, mas foi plantada em mim, ali, a semente do projeto", diz Baruzzi.

O parque do Xingu, fundado em 1961, precisava de um plano regular de vacinação, de assistência médica e uma retaguarda hospitalar para seus habitantes. A cidade mais próxima do Xingu naquela época era São Paulo, por causa do vôo regular da FAB. Levava 20 pessoas e, apesar de desconfortável e dos tempos da Segunda Guerra, o avião servia para os propósitos do médico.

Baruzzi decidiu arregaçar as mangas, estabelecer parcerias e levar médicos e estudantes para tratar daqueles índios, combalidos por uma epidemia de sarampo, que dizimou 20% da população adulta em meados da década de 50, e por uma altíssima taxa de mortalidade infantil.

Raio-X

Nome: Douglas Rodrigues
Idade: 47 anos
Estado civil: casado, três filhos
Profissão: médico sanitarista
Livro de cabeceira: "Cidade de Deus", de Paulo Lins (edição revisada, Companhia das Letras)
Hobby: pesca

Rodrigues foi um dos estudantes convidados. Apesar de urbano até a medula, sempre preferiu, em férias, viajar para lugares inusitados. O rapaz, então com 20 e poucos anos, um mochileiro típico, decidiu se aventurar no mato para ver no que ia dar. Bem-humorado, diplomata nato, revelou-se líder depois de ter capturado a tal "alma" da selva. "Sempre fui militante de esquerda, tinha minhas ideologias, mas índios nunca estiveram em meus planos", diz. "Fui picado."

A primeira equipe de Baruzzi —de dez pessoas, entre médicos e auxiliares— deparou-se com um problema a mais no parque: a falta de comunicação. Os índios não falavam português e se exercitavam em quatro famílias linguísticas tão distintas como o latim e o russo: aruaque, caribe, jê e tupi. Os "brancos" não podiam diagnosticá-los com precisão. Rodrigues, hoje, é fluente em pelo menos um idioma nativo, o caiapó, e arranha outras três.

Inicialmente, as equipes que viajavam ao Xingu deslocavam-se duas vezes por ano e, na maior parte do tempo, transportavam medicamentos e vacinas. Dormiam nas aldeias. "Não tive dificuldade em dormir em redes, tomar banho em rio e nem com a alimentação: sou bom de boca", diz Rodrigues.

Arquivo Pessoal
Rodrigues realiza exame clínico em criança indígena, em 1994
Depois de mais de 30 anos dividindo a responsabilidade pela saúde dos povos indígenas com a Funai (Fundação Nacional do Índio), a administração do projeto ficou nas mãos da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em que o médico ainda é professor.

Uma das idéias primordiais dos distritos, criados há quatro anos, é a de fomentar a autogestão dos serviços, levando aos índios cursos e discussões sobre aspectos gerenciais e políticos e sobre a gestão de convênios. É uma unidade organizacional de responsabilidade da Fundação Nacional de Saúde, estabelecida a partir de população e território definidos por critérios socioculturais, geográficos, epidemiológicos e de acesso aos serviços.

Por isso, o projeto serve também para formar profissionais da própria comunidade, como é o caso do cacique Yefuka. "É uma grande conquista de cidadania", diz a enfermeira e coordenadora de recursos humanos Lavínia Oliveira. São quatro anos de formação modular, bem mais do que os 14 meses que a formação demora em cidades como São Paulo.

"Além do ensino técnico, precisamos repassar o conhecimento fundamental", diz a enfermeira. O cacique, por exemplo, afirma ter tido muita dificuldade em aprender ciências sociais e naturais. "Yefuka é alguém que pode interferir diretamente na comunidade, por identificação e por afinidades culturais", comenta Lavínia, que diz ter saído dessa experiência modificada espiritualmente.

A verba anual para o projeto é de R$ 3 milhões. "Muito pouco para o que pretendemos realizar. Precisamos de mais R$ 1 milhão", diz Rodrigues. Hoje, trabalham na equipe do médico sanitarista 96 pessoas, e 70% delas são índios. Médicos, enfermeiros, dentistas, agentes de saúde e auxiliares que cuidam de cerca de 4.000 pessoas, a população aproximada do parque.

"Douglas é um caso raro. As pessoas que se especializam na área em que ele trabalha geralmente convivem com os índios temporariamente", diz André Villas-Bôas, indigenista da ONG Instituto Socioambiental. "Trata-se de um homem dedicado, que respeita a medicina tradicional dos indígenas".

Entre as qualidades de Rodrigues apontadas por seus funcionários, está a de ser brigão, de lutar sem medo por mais recursos para a comunidade indígena. "Sofro preconceito também por trabalhar com índios, assim como quem trabalha com os sem-terra."

O Xingu, hoje, é um oásis rodeado de destruição por todos os lados, entre o desmatamento e a cidade grande. Os grandes fazendeiros trocaram a pecuária pela plantação de soja e os defensivos agrícolas vêm poluindo os mananciais que servem às comunidades. O parque também não tem saneamento básico. "Por isso há uma grande preocupação de nossa equipe com relação às doenças diarréicas", explica Rodrigues. "Os hábitos alimentares tendem a mudar com a poluição daqueles rios."

Não só isso. "O contato com a sociedade se intensificou muito, o que provoca acidentes, alcoolismo e doenças." Muitos dos residentes no parque costumam passar a noite nas cidades vizinhas para se divertir. É comum frequentarem prostíbulos. A Aids é uma ameaça. Usar camisinha é um hábito incomum. A equipe costuma fornecê-las para os "passeadores" —os índios que costumam passear na cidade. "As doenças sexualmente transmissíveis, como corrimentos vaginais e gonorréias, são os maiores males", afirma o médico, que garante que todas as doenças que podem ser prevenidas foram controladas por vacinas. "Dia de vacinação na aldeia é dia de festa."

As mulheres não usam qualquer tipo de anticoncepcional e têm, em média, nove filhos. Todos em partos domiciliares. "Eles costumam usar ervas e raízes", diz Rodrigues. "Não queremos sufocar a medicina tradicional, criar uma outra relação de dependência."

"Nossa idéia não é realizar um trabalho assistencialista. Propomos a experimentação de novos modelos e, infelizmente, não podemos ampliar o projeto para outras áreas indígenas", afirma Rodrigues. Só no Xingu são 58 aldeias.

Quando começou a frequentar mais assiduamente o parque, em 1979, Rodrigues era solteiro. Dois anos depois, casou-se, no ritual indígena —basicamente resumia-se à tarefa de colocar a rede dele em cima da dela—, com uma também médica sanitarista, Sofia Mendonça, 42. Os filhos vieram: Mário e André, 10. Carolina, 21, é filha do primeiro casamento do médico.

"A Carol trabalha com cinema, não seguirá nossa carreira. Quanto aos meninos, acho cedo para avaliar", pondera Sofia. O casal e os filhos moram em uma chácara, rodeados de peixes e de silêncio.

Silêncio? O próximo plano da família é montar uma banda de rock. Sofia será a vocalista, Mário, o tecladista, André, o performer, e Douglas, um pianista bissexto, compositor e também tecladista. O nome da banda? "Não sabemos ainda." Bem que poderia ser Xingu.

     

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