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27/05/2003 - 03h24

Verbete: Ação afirmativa, reação polêmica

ANTÔNIO GOIS
da Folha de S.Paulo, no Rio

A adoção, neste ano, do sistema de cotas na Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) para negros, pardos e alunos da rede pública intensificou no Brasil a polêmica sobre o que se convencionou chamar de ações afirmativas. Reservar vagas para determinadas minorias em universidades ou no mercado de trabalho é apenas uma das maneiras —talvez a mais polêmica— de colocar em prática esse tipo de ação.

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Em geral, o que se pretende com as ações afirmativas é reconhecer que a igualdade de oportunidade entre os cidadãos —base de quase todas as democracias modernas— não é alcançada na prática se o Estado e a sociedade não passarem a tratar de forma diferenciada, pelo menos temporariamente, aqueles que se encontram nos estratos menos favorecidos da população.

O debate sobre as ações afirmativas —e a polêmica que sempre acompanha o assunto— não é privilégio brasileiro. Estados Unidos, Malásia, Noruega, Dinamarca, Irlanda, Itália e Argentina, entre outros países, vêm adotando, nos últimos 30 anos, políticas públicas com o objetivo de diminuir as desigualdades de gênero ou entre grupos étnicos.

São exemplos de ações afirmativas leis que exigem um mínimo de mulheres como candidatas a cargos públicos, cotas para deficientes físicos em empresas com mais de cem trabalhadores e cursos de preparação para concursos voltados apenas para a população negra ou de baixa renda.

Essas ações já existem no Brasil. Nenhuma delas, no entanto, causou tanta polêmica quanto as cotas na Uerj. A reserva de vagas para negros, pardos e alunos da rede pública no vestibular da universidade provocou uma onda de ações na Justiça que já chegou ao Supremo Tribunal Federal.

Parte da polêmica, no caso da cota racial, é explicada pela dificuldade em se definir quem é negro ou pardo. Como não há critério científico para definir cor ou raça, a Uerj optou pelo critério de autodeclaração, o mesmo recomendado pela ONU. O problema é que esse critério não impede a fraude, já que é o próprio candidato que afirma se tem ou não direito à cota.

A legalidade desse sistema —que o governo federal estuda implementar nas universidades federais— será julgada, em julho, pelo STF, que terá de decidir qual é o significado da igualdade citada na Constituição brasileira.

De um lado, há quem interprete que o princípio da isonomia impede que alguns grupos, mesmo que desfavorecidos, sejam privilegiados. De outro, há o argumento de que, para garantir essa igualdade, é preciso tratar de forma desigual os que são socialmente desiguais, legitimando, assim, políticas como as cotas. Em São Paulo, há dois projetos, de autoria de dois deputados de partidos diferentes, tramitando na Assembléia: um contra (PTB) e outro a favor (PT) da implantação do sistema de cotas nas universidades paulistas (USP, Unesp e Unicamp).

Nos Estados Unidos —modelo mais citado nas discussões no Brasil— as políticas de ações afirmativas já existem há mais de 30 anos, mas ainda não pararam de gerar polêmica. Em 1978, uma decisão daquele país julgou (por 5 votos a 4) que o sistema de cotas praticado então pela Universidade da Califórnia era ilegal.

A decisão, no entanto, foi dúbia e deu brechas para que as universidades continuassem adotando políticas de ações afirmativas. Hoje, apesar de não haver cotas predeterminadas, estudantes negros, hispânicos ou de outras minorias podem ter, em algumas universidades, pontos a mais no processo seletivo apenas pelo fato de serem dessas minorias.

Apesar de já ser prática na maioria das universidades mais concorridas dos Estados Unidos, esse sistema voltou a ser contestado na Suprema Corte em uma ação envolvendo a Universidade de Michigan. O julgamento está previsto para o mês que vem e pode obrigar todas as universidades do país a rever seus critérios de admissão de minorias.

O julgamento reacendeu a polêmica sobre as ações afirmativas na sociedade americana. O presidente George W. Bush, por exemplo, se declarou contrário ao sistema adotado pela Universidade de Michigan. Já o secretário de Estado dos EUA, Colin Powell, primeiro negro a ocupar o cargo, discordou de Bush e defendeu a universidade.

No Brasil, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar do mundo, a aceitação de políticas de ações afirmativas por parte da sociedade é um reconhecimento de que há uma dívida social a ser paga. No caso brasileiro, essa dívida é evidente nas estatísticas oficiais. Por mais que o país tenha melhorado seus indicadores sociais, a desigualdade entre raças não diminuiu. Segundo o Censo 2000, a média de anos de estudo entre os negros passou de 3,4 em 1991 para 4,6 em 2000. Como os brancos também progrediram (de 5,6 para 6,6), a distância entre os dois grupos permaneceu quase inalterada.

Na educação, um estudo divulgado neste ano por pesquisadores da PUC do Rio mostra o quanto é difícil diminuir a desigualdade. A partir de dados do Saeb (Sistema de Avaliação do Ensino Básico), a pesquisa mostrou que os estudantes negros tinham, em média, um desempenho inferior em 9,3 pontos em relação aos brancos, mesmo quando comparados alunos da mesma classe social que estudam na mesma escola.

Para os pesquisadores, o resultado sugere que possa haver racismo na sala de aula quando o professor dá mais atenção ao aluno branco do que ao negro. Outro fator que explica essa diferença é a herança entre gerações: os pais e avós de negros têm, em média, nível de escolaridade menor do que os parentes dos brancos. Como a escolaridade dos pais e avós influi no rendimento do aluno, essa herança acaba pesando contra o aluno negro, mesmo que eles estudem nas mesmas condições.

Em outras palavras, o que os defensores das ações afirmativas argumentam é que a universalização do ensino não é capaz de reduzir, sozinha, desigualdades construídas ao longo de séculos.

Como afirmou o historiador Luiz Felipe de Alencastro, ao comentar o fato de apenas 1,3% dos estudantes da USP serem negros, "o que não dá mais é continuar no Brasil com a política grotesca do deixar como está para ver como é que fica".

Antônio Gois, 28, é jornalista especializado em educação. Apesar de ter um bisavô negro, acredita que nenhuma universidade o aceitaria pelo critério de cotas.

     

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