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24/06/2003 - 03h11

Medicina adota artes e letras

JOANA MONTELEONE
MARCELO VAZ

free-lance para a Folha de S.Paulo

Na faculdade, um grupo de alunos assiste a uma aula sobre literatura e discute a obra de Shakespeare, Cortázar e Balzac. A cena, rotineira em cursos de ciências humanas, poderá, em breve, fazer parte do dia-a-dia dos cursos de medicina. Publicadas em novembro de 2001, as Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em medicina são parcialmente responsáveis pela novidade: elas indicam que a estrutura do curso deve "incluir dimensões éticas e humanísticas, desenvolvendo no aluno atividades e valores orientados para a cidadania".

Reprodução
"Lição de Anatomia" (1632), de Rembrandt, quadro usado em aula de história da arte na Famerp

Na teoria, isso poderia significar ênfase em disciplinas que estimulassem o debate acerca da prática médica —como ética e sociologia—, mas algumas faculdades resolveram ser mais radicais e começaram a implantar cursos de literatura e história da arte, por exemplo, em seus currículos.

"Nos Estados Unidos, essas matérias são chamadas de humanidades médicas e são obrigatórias", afirma o escritor e médico Moacyr Scliar, também colunista da Folha, que dá cursos e palestras extracurriculares na Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre. "Estamos tentando transformar esses cursos em disciplinas correntes do currículo."

As matérias que englobam as chamadas humanidades médicas foram criadas para que o profissional em formação pudesse desenvolver o raciocínio humanístico e aprimorar o trato com o paciente. "É a maneira de lidar com o paciente que define se o estudante se tornará ou não um bom médico", diz Ibraim Lafayete Salimon, responsável pela mudança curricular da Famerp (Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto), no interior de São Paulo.

Na Famerp, os estudantes já têm aulas de literatura e arte desde 2001. "É uma ousadia, se pensarmos na concepção tradicional de prática médica, mais voltada para o aspecto técnico da profissão", diz Aguinaldo José Gonçalves, professor de história da arte que iniciará seu curso no segundo semestre deste ano. "Isso também não deixa de ser uma volta ao passado, quando o médico estava mais ligado à vida de seus pacientes."

Em suas aulas, Gonçalves pretende incluir a análise de quadros como "Lição de Anatomia", de Rembrandt. "A medicina deve muito à arte", diz. "O esforço de pintores como Leonardo da Vinci, que dissecava cadáveres contra as leis da Igreja Católica, que possibilitou a descoberta de conceitos fundamentais do funcionamento do corpo humano."

Manifestações artísticas aparecem em pelo menos duas disciplinas, ambas eletivas, na Universidade Federal de São Paulo. "Uso ilustrações da Idade Média para mostrar como o toque, atualmente esquecido, era importante para o médico daquela época e, ainda hoje, continua valioso para o paciente", afirma o professor de história da medicina Dante Marcello Gallian. O professor dirige o Cehfi (Centro de História e Filosofia das Ciências Médicas), núcleo que também ministra um curso que liga o cinema a temas do dia-a-dia da medicina.

Todo esse esforço não é feito sem resistência. "O principal problema foi a dificuldade dos alunos de entender o porquê daquelas disciplinas no currículo", afirma Amanda Soares, 21, aluna do terceiro ano na Famerp —sua turma foi a primeira a ter aulas de humanas na faculdade. "Mas os cursos ajudam a lidar com o paciente. É preciso entender que o currículo não pode ser tão centrado em biológicas."

Na USP de Ribeirão Preto, o curso de medicina busca mais conceitos históricos e filosóficos do que artísticos. "Procuramos mostrar conceitos como a concepção grega de dor e morte", afirma o professor de medicina legal Marco Aurélio Guimarães.

Fernanda Deutsch, 21, aluna do quinto ano na Faculdade de Medicina da USP em São Paulo, é a favor da inclusão de disciplinas de humanas nos cursos. "Acho que são capazes de sensibilizar um pouco não só o estudante mas as pessoas de uma maneira geral", diz. Mas ela acredita que não seriam tão eficazes se fossem cursos optativos. "Provavelmente, nenhum dos alunos mais 'insensíveis' optaria por fazer a matéria."

A preocupação com a postura dos profissionais da medicina vem crescendo nas últimas décadas. "A ênfase da formação passou a ser na leitura de exames cada mais complexos e na prescrição de remédios cada vez mais potentes", afirma Salimon. Com isso, há alguns anos, passou-se a questionar a maneira tecnicista de encarar a profissão —dando origem a debates que culminaram, no Brasil, nas diretrizes de 2001.

O sociólogo Paulo Henrique Martins, professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Pernambuco e autor do livro "Contra a Desumanização da Medicina" (Vozes, 334 págs., R$ 38), acredita que a impessoalidade se verifica em toda a sociedade, mas considera o problema mais sensível na área médica. "O médico não tem mais tempo para perder. Uma lógica produtivista impõe-se sobre uma tentativa de humanização, e essa mentalidade passa para o estudante", afirma.

Leia mais sobre o tema no artigo "O médico-objeto", publicado no Sinapse de 25 de março de 2003.

     

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