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24/06/2003 - 03h15

Verbete: O pêndulo está parado

OSCAR PILAGALLO
especial para a Folha de S.Paulo

Reprodução
O atual debate sobre o nível dos juros no Brasil, colocado em perspectiva histórica, não é muito diferente daquele que tem dividido a sociedade desde meados do século 19, quando, depois da Independência, a política monetária passou a contrapor interesses divergentes. De um lado, quem teme a volta da inflação defende a manutenção das taxas num patamar elevado. Juros altos inibem o consumo, desestimulam a produção, esfriam a economia e, em consequência, tendem a tirar a pressão dos preços, controlando a inflação. De outro lado, quem acha que se deve dar prioridade ao desenvolvimento e à criação de empregos quer a redução dos juros.

O conflito é velho. O que muda são as etiquetas. As duas linhas de pensamento já foram chamadas de monetarista e desenvolvimentista. No passado remoto, quando ouro era sinônimo de austeridade e emissão de dinheiro sem lastro era só irresponsabilidade, os debatedores atendiam pelos sugestivos nomes de metalistas e papelistas. Hoje, na provocadora denominação do ex-ministro da Fazenda Delfim Netto, eles se dividiriam entre fatalistas e voluntaristas.

Não há nada de abstrato na divergência. As opiniões opostas refletem interesses antagônicos. Numa simplificação, quem tem dinheiro prefere a estabilidade monetária resultante do juro elevado; quem precisa de dinheiro prefere o crescimento econômico decorrente do juro reduzido.

A política econômica no Brasil tem, ao longo da história, privilegiado ora um grupo, ora outro, descrevendo um movimento pendular que leva a períodos de restrição e expansão. O fenômeno não é típico do Brasil. Tem sido observado em outros países e épocas e não pode ser dissociado da própria natureza humana.

Como diz o economista John Kenneth Galbraith, "após uma experiência recente com inflação, as pessoas preferem preços estáveis e, tendo longa experiência com preços estáveis, tornam-se indiferentes ao risco de inflação".

A questão, nesse caso, é saber se os tempos de inflação descontrolada estão distantes o suficiente na memória coletiva da sociedade. Na semana que vem, no dia 1º de julho, o real completa nove anos. Foi um período marcado, no geral, pela estabilidade dos preços, com a contrapartida do pífio crescimento da economia. Há quem tema mais a volta do dragão inflacionário do que uma estagnação temporária —esses acreditam que o juro alto é um mal menor. Na outra ponta, há quem ache intolerável o custo social do controle da inflação —para esses, um pouco de aceleração dos preços seria aceitável, em troca de crescimento.

A história do Brasil é pontuada por políticas expansivas e restritivas que se sucederam rapidamente, uma neutralizando a outra. Os extremos que o país viveu nos primeiros anos de República podem ser vistos como um caso emblemático da observação de Galbraith.

O novo regime nasceu no final do século 19 sob o signo da intensa expansão. Estimulada pela facilidade do crédito, a economia experimentou um boom que, no entanto, logo se dissipou numa onda especulativa, o Encilhamento. A reação conservadora se daria alguns anos mais tarde. O presidente Campos Salles nem esperou assumir o cargo, em 1898, para acertar com os credores estrangeiros um acordo que, entre outras coisas, previa a implantação de duras medidas antiinflacionárias (para não estender o assunto, basta dizer que o governo queimava cédulas para diminuir a quantidade de dinheiro em circulação).

O pêndulo monetário, porém, logo voltaria para a posição anterior. O presidente seguinte, Rodrigues Alves, aproveitou o fato de ter herdado uma economia razoavelmente saneada para promover o desenvolvimento, legando como principal obra de seu mandato a ambiciosa urbanização do Rio de Janeiro, então capital federal.

Esse histórico de contínuo vaivém da política monetária talvez tenha gerado, inconscientemente, a expectativa de que, após um período de austeridade, chegaria a vez do desenvolvimento. A expectativa se consolidou no ano passado, com a eleição de um candidato que fizera campanha com críticas diretas à política de juros e promessas de desenvolvimento. A taxa básica, no entanto, de 26% ao ano, uma das mais altas do mundo apesar da queda da semana passada, está maior no governo de Luiz Inácio Lula da Silva do que no final do mandato de Fernando Henrique Cardoso —daí a frustração de boa parte da sociedade.

É curioso notar que, no nível em que se encontram, os juros desempenham papel inverso ao que tinham nos primórdios das relações comerciais baseadas no crédito. Essa origem remonta ao século 12, quando as primeiras grandes feiras medievais ajudaram a restabelecer a economia monetária, que, depois do Império Romano, perdera a importância. As feiras contavam com a figura do cambista, que, além de trocar moeda, emprestava dinheiro a juros, azeitando o comércio. Hoje, ao contrário dos tempos medievais, a função dos juros tem sido colocar areia nas engrenagens do comércio (e da indústria e da agricultura também).

Discute-se atualmente se decisões sobre juros devem passar por considerações técnicas ou políticas (o que, no fundo, é apenas uma outra maneira de nomear aquelas duas escolas de pensamento: quem defende a decisão técnica é, em geral, a favor dos juros altos; quem defende a política quer taxas mais baixas). Quando os juros apareceram em cena, na Europa medieval, o debate que provocaram tinha outra natureza. Havia uma preocupação ética, ainda que vazada em retórica religiosa.

A Igreja Católica condenava a usura e a exploração decorrente da cobrança de juros. Errou pelos motivos certos. A posição da igreja, apesar de frequentemente ignorada, brecou o crescimento em países predominantemente católicos, enquanto as nações calvinistas, onde não havia restrição à remuneração do empréstimo, prosperavam.

A prática atual de taxas elevadíssimas, assim como seu oposto —a antiga proibição dos juros—, pode significar a diferença entre aproveitar e não aproveitar uma oportunidade de crescimento sustentável que se apresente. Resta, portanto, esperar que o Banco Central não erre, mesmo que seus motivos sejam certos.

Oscar Pilagallo, 47, é jornalista e autor de "A Aventura do Dinheiro - Uma Crônica da História Milenar da Moeda" (Publifolha), entre outros livros. Prefere acreditar que inflação controlada e crescimento não se excluem, necessariamente.

     

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