Folha Online sinapse  
24/06/2003 - 03h16

Leia a introdução de "História do Riso e do Escárnio"

da Folha de S.Paulo

Leia abaixo a introdução do livro "História do Riso e do Escrárnio", do historiador francês Georges Minois (Editora da Unesp, 654 págs., R$ 68), citado na seção "Leituras Cruzadas" da edição 12 do Sinapse (junho de 2003).

Introdução

O riso é um caso muito sério para ser deixado para os cômicos. É por isso que, desde Aristóteles, hordas de filósofos, de historiadores, de psicó-logos, de sociólogos e de médicos, que não são nada bobos, encarregaram-se do assunto. As publicações sobre o riso contam-se aos milhares, o que nos dispensa de estabelecer uma bibliografia, porque ela seria ora ofensivamente seletiva, ora interminável.

Nos dez últimos anos, o interesse pelo riso atingiu o auge, e isso em todas as disciplinas. Para nos atermos a História, não se passa uma semana sem que um livro, um artigo, um programa de rádio, um colóquio ou uma conferência trate do riso nessa ou naquela época, nesse ou naquele meio. Na França, por exemplo, a associação Corhum (Pesquisas sobre o Cômico, o Riso e o Humor), criada em 1987, organiza regularmente jornadas de estudo sobre o assunto e colóquios, dentre os quais o mais recente ocorreu em Besançon de 29 de junho a 1o de julho de 2000, tendo por tema "Dois mil anos de riso. Permanência e modernidade"; a associação publica a revista semestral Humoresques. Nos Estados Unidos, o jornal interdisciplinar Humor: International Journal of Humor Research preenche a mesma função e, no mundo inteiro, conhecemos publicações similares.

Esse interesse pelo riso não deveria surpreender. De fato, estamos imer-sos em uma "sociedade humorística", como bem analisou Gilles Lipovetsky,- em 1983, em A era do vazio. Uma sociedade que se quer cool e fun, amavelmente malandra, em que os meios de comunicação difundem modelos descontraídos, heróis cheios de humor e em que se levar a sério é falta de correção. O riso é onipresente na publicidade, nos jornais, nas transmissões televisivas e, contudo, raramente é encontrado na rua. Elogiamos seus méritos, suas virtudes terapêuticas, sua força corrosiva diante dos integrismos e dos fanatismos e, entretanto, mal conseguimos delimitá-lo.

Estudado com lupa há séculos, por todas as disciplinas, o riso esconde seu mistério. Alternadamente agressivo, sarcástico, escarnecedor, amigá-vel, sardônico, angélico, tomando as formas da ironia, do humor, do burles-co, do grotesco, ele é multiforme, ambivalente, ambíguo. Pode expressar tanto a alegria pura quanto o triunfo maldoso, o orgulho ou a simpatia. É isso que faz sua riqueza e fascinação ou, às vezes, seu caráter inquietante, porque, segundo escreve Howard Bloch, "como Merlim, o riso é um fenômeno liminar, um produto das soleiras, ... o riso está a cavalo sobre uma dupla verdade. Serve ao mesmo tempo para afirmar e para subverter". Na encruzilhada do físico e do psíquico, do individual e do social, do divino e do diabólico, ele flutua no equívoco, na indeterminação. Portanto, tem tudo para seduzir o espírito moderno.

Fenômeno universal, ele pode variar muito de uma sociedade para ou-tra, no tempo ou no espaço. Já em 1956, Edmund Bergler, em Laughter and sense of humour, apontava mais de oitenta teorias sobre a natureza e a origem do riso, e a lista prolongou-se depois. Se os etnólogos e os soció-logos exploraram largamente a panóplia geográfica do riso, os historiadores só recentemente se interessaram pelo fenômeno. Como sempre, preocupações ideológicas estavam na origem das investigações. O lado subversivo e re-volucionário do riso interessou os historiadores soviéticos em meados do século xx. Em 1954, Alexandre Herzen, lembrando que na Antigüidade "ria-se às escâncaras até Luciano" e que, "depois do século iv, os homens cessaram de rir, choraram sem descanso e pesadas cadeias caíram sobre o espírito, entre lamentações e remorsos de cons-ciência", declara: "Seria extremamente intere-ssante escrever a história do riso". Alguns anos mais tarde, Mikhaïl Bakhtine põe-se a trabalhar e publica um livro que se tornou clássico, traduzido para o francês em 1970: A obra de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e sob a Renascença, magistral história do riso do século xiv ao xvi, dando resumos sobre os períodos- anteriores e posteriores.-

Mais tarde, Jacques Le Goff consagra vários estudos ao riso medieval, especialmente ao lugar que ele ocupa nas ordens monásticas. Em 1997, nos Anais, constatando que o riso é um tema da moda e que, "como sempre, a moda exprime um reconhecimento do interesse emergente de um tema na paisagem científica e intelectual", ele sugere abrir uma vasta pesquisa histórica sobre esse assunto. Antes e depois dessa data, a idéia germinou, e numerosos historiadores produziram estudos memoráveis sobre o riso, em diferen-tes épocas: Dominique Arnould, Dominique Bertrand, Bernard Sarrazin, Daniel Ménager, Nelly Feuerhahn, Jeannine Horowitz, Sophia Menache e muitos outros, na França, cujos nomes e títulos de obras serão encontrados nas notas do presente livro; Jan Bremmer, Herman Rooden-burg, Henk Driessen, na Holanda; Derek Brewer, Peter Burke, na Grã-Bretanha; M. Tschipper, W. Haug, N. Neumann, na Alemanha; Q. Cataudella, G. Monaco, na Itália; T. Castle, B. I. Granger, S. M. Tave, nos Estados Unidos; e dezenas de outros autores, cujos trabalhos (citados em refe-rência) utilizamos.

Porque, inconscientes da amplitude da tarefa, quisemos realizar uma síntese, o que uma pessoa sensata jamais teria feito, tão imenso é o tama-nho do campo. Mas não é preciso ser um pouco louco para empreender, sem rir, uma história sobre o riso? De qualquer forma, é sempre muito cedo ou muito tarde para fazer uma síntese. Esse assunto oferece ao menos uma vantagem, já que permite responder antes a todos os críticos: não leve isso muito a sério!

Inevitavelmente, esse trabalho é incompleto, seletivo, demora-se muito em alguns aspectos, negligencia outros, mostra-se desenvolto aqui, maçante ali, cita muito, compila, esquematiza escandalosamente, esquece informações essenciais, adota, às vezes, um tom trivial, emite julgamentos parciais e contestáveis, aprovados por uns, recusados com indignação por outros. Tudo isso é de antemão confessado, assumido, reivindicado: se um assunto como o riso não admite a fantasia, onde iremos procurá-la?

Outra precaução que ritualmente os autores de obras sobre o riso devem ter o cuidado de consignar na introdução é avisar o leitor de que não se trata de um livro para fazer rir. Nem compilação de pilhérias nem receitas de animador: eis aqui, simplesmente, uma contribuição para a história das menta-lidades. Cícero já ressaltava que os trabalhos sobre o riso eram muito enfadonhos. A censura não é nova e é, aliás, injustificada. Dissertar sobre o riso é, com freqüência, frustrante, já que é preciso abster-se de citar uma multidão de anedotas e segurar o riso para relatar como riam nossos ancestrais. Esperamos, apesar de tudo, que nosso propósito faça sorrir, voluntária ou involuntariamente.

O que talvez não faça os puristas rirem é a flexibilidade, eventualmente abusiva, no emprego de termos como "burlesco", "grotesco", "satírico", "paródico", "humorístico"... Conhecem-se, por exemplo, os debates ubuescos aos quais se dedicaram certos especialistas desprovidos de humor a propósito da palavra "humor". Tem-se o direito de empregá-la a respeito dos gregos? Cícero tem humor? Ou é preciso reservar a palavra e a coisa, como uma safra controlada, para a Inglaterra depois do século xviii? Digamos claramente: para nós, o humor não tem idade nem pátria. Ele adquire formas diferentes, mas um camponês egípcio do Médio Império pode muito bem ter um senso de humor tão desenvolvido quanto Oscar Wilde. O tempo não vem ao caso.

A dificuldade essencial do empreendimento vem, exatamente, da aparente estabilidade do riso. Lendo as análises de Aristóteles sobre o assunto, tem-se a impressão de que os gregos de 23 séculos atrás riam como nós, com as mesmas nuances e pelas mesmas razões. Vamos então escrever seiscentas páginas por nada? É o cúmulo do escárnio! Tentemos justificar-nos. Em primeiro lugar, lembrando a importante distinção (a estabelecer) entre a prática e a teoria do riso. A segunda é, evidentemente, muito mais evolutiva e fácil de seguir. Em todas as épocas foram escritos tratados sobre o riso, exprimindo a opinião dominante sobre esse assunto na sociedade ou em certos grupos sociais. A história do riso é, antes de tudo, a história da teoria do riso. Ora, esta última, inegavelmente, mudou em virtude da mentalidade dominante. Já a prática revela-se, claramente, mais difícil de perceber. As fontes são hete-róclitas e dispersas e, muitas vezes, enganadoras. A prática do riso evolui de maneira muito mais lenta e imperceptível que a teoria. Entretanto, mesmo nesse nível, deve ser possível fazer uma idéia. Os sociólogos atuais- pensam, por exemplo, que o riso, no próprio seio de nossa sociedade humorística, é um retrocesso. Muitos analistas encontram-se por trás desta apóstrofe de J. Lederer: "É em vão que procurais o segredo perdido da imensa jovialidade de ontem. Vossos risos não têm graça, são acanhados, miseráveis, são soluços invertidos, o resíduo desse-cado das lágrimas que não mais conseguis derramar". Cabe-nos verificar, consultando crônicas, diários, obras literárias e artísticas e todo testemu-nho suscetível de carrear indícios. Fazemos uma idéia, sem dúvida muito aproximada. Mas quem disse que a história, sobretudo a das mentalidades, é uma ciência exata?

Traçar conjuntamente a história da prática e da teoria do riso não é o mais fácil, mas também não é o menos interessante. Não é curioso, por exemplo, constatar que atualmente vivemos uma dupla contradição: de um lado, muitos têm a impressão de que o riso está voltando, já que ele se ostenta por toda parte; por outro lado, rimos cada vez menos, apesar de todas as ciências alardearem os méritos quase milagrosos do riso.

Foi essa contradição que nos levou a escrever este livro, que, à primeira vista, não tem muita coisa em comum com os temas que abordamos até aqui: por que uma história do riso depois de uma história do suicídio, dos infernos, do diabo, da velhice, do ateísmo, das previsões, das relações entre a Igreja e a ciência, entre a Igreja e a guerra? É que, no centro de todos esses assuntos, há a mesma interrogação: afinal de contas, que fazemos aqui? As religiões inventaram respostas para nos apaziguar; elas criaram infernos e demônios para nos ensinar a viver sabiamente em conjunto, limitando a caça pelo medo da polícia. As ciências nos desiludiram, por não trazer a explicação definitiva, que ainda e sempre esperamos. O ateísmo assegura-nos que não é nada disso — o que, provavelmente, é verdadeiro, mas difícil de suportar. Então, alguns se evadem sonhando com futuros ilusórios que jamais verão. Outros passam o tempo guerreando. Outros ainda se suicidam dizendo que, se soubessem, não teriam vindo. A maioria, que não tem a coragem de abrir caminho, depois de ter sido empurrada durante a existência, prolonga sua velhice esperando ser empurrada para o nada. Muitos, enfim, diante dessa enorme "cânula cósmica", como a chama Alvin Toffler, pre-ferem rir.

O riso, o grande riso de Demócrito, não seria, de fato, a resposta apro-priada? Se verdadeiramente nada tem sentido, o escárnio não seria a única atitude "razoável"? O riso não é o único meio de nos fazer suportar a exis-tência, a partir do momento em que nenhuma explicação parece convincente? O humor não é o valor supremo que permite aceitar sem compreender, agir sem desconfiar, assumir tudo sem levar nada a sério?

O riso faz parte das respostas fundamentais do homem confrontado com sua existência. O objetivo deste livro é reencontrar as maneiras como ele faz uso dessa resposta ao longo da História. Exaltar o riso ou condená-lo, colocar o acento cômico sobre uma situação ou sobre uma carac-terística, tudo isso revela as mentalidades de uma época, de um grupo, e sugere sua visão global do mundo. Se o riso é qualificado às vezes como diabólico, é porque ele pôde passar por um verdadeiro insulto à criação divina, uma espécie de vingan-ça do diabo, uma manifestação de desprezo, de orgu-lho, de agressividade, de regozijo com o mal. A civilização cristã, por -exemplo, fica pouco à vontade para dar lugar ao riso, ao passo que as mitologias pagãs lhe conferem um papel muito mais positivo. Pode-se rir, e pode-se rir de tudo? A resposta a essas questões exige posições existen-ciais fundamentais.

Por fim, uma última dificuldade: o riso tem um aspecto individual e um aspecto coletivo. Uma história do riso é, ao mesmo tempo, uma história da festa, que coloca outra ordem de problemas. A junção dos dois não é evidente. Há festas solenes, sem riso. Contudo, nas dionisíacas, no Carnaval e nas saturnais, na festa dos loucos, admite-se que a festa, como o riso, rompe o curso ordinário das coisas e que seus vínculos são essenciais porque ambos abrem uma janela sobre outra coisa, sobre outra realidade, talvez uma utopia, como escreve Jean-Claude Bologne: "Um e outro quebram o circuito estabelecido entre a reprodução social e a adesão dos homens no curso de um júbilo material em que o excesso de energia ou o dinamismo próprio da espécie se abre sobre a premonição utópica de uma existência infinita em que o homem não estaria mais confinado nos quadros sociais".

Não se tratará de traçar a história da festa em si mesma, mas de explorar as relações complexas que ela estabelece com o riso, para avaliar a força social, política e cultural deste, que tanto pode ser um elemento subversivo quanto um elemento conservador. O riso não tem implicações psicológicas, filosóficas nem religiosas; sua função política e social — quando se pensa na sátira e na caricatura — é igualmente importante. O riso é um fenômeno global, cuja história pode contribuir para esclarecer a evolução humana.

Leia mais
  • Leituras Cruzadas: Ri melhor quem ri

         

  • Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).