Folha Online sinapse  
24/06/2003 - 03h18

Rubem Alves: A sombra enorme do vestibular

RUBEM ALVES
colunista da Folha de S.Paulo

Fernando Pessoa —quem diria?— foi ideólogo da Coca-Cola... Quem me revelou isso foi o professor Ademar Ferreira dos Santos, educador português, da Escola da Ponte, em Portugal. (Se vocês desejarem saber um pouco sobre essa escola extraordinária, leiam o meu livrinho "A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir", publicado pela Papirus.)

Marcelo Zocchio
Pois ele, o professor, me contou que, nos idos dos anos 20, Fernando Pessoa, precisando ganhar dinheiro para sobreviver, passou a trabalhar para uma empresa de propaganda. A Coca-Cola estava chegando, era desconhecida, de gosto estranho, e precisava de uma cunha poética que lhe abrisse o caminho.

Foi então que o escritor português produziu este curtíssimo slogan: "A princípio, estranha-se. Depois, entranha-se". Absolutamente genial! Aconteceu comigo.

Caipira de Minas Gerais mudado para o Rio, acostumado a tomar refresco de pitanga, achei a Coca-Cola uma coisa horrível, com gosto de verniz misturado com sabão. Aí, aos poucos, na roda dos colegas cariocas que tomavam Coca-Cola com prazer, a metamorfose foi acontecendo. O estranhamento se transformou em entranhamento. E continua, a despeito da minha resistência ideológica. Como disse Barthes, "meu corpo não tem as mesmas idéias que eu".

Disse tudo isso porque sei que vocês irão estranhar a idéia que vou apresentar. Quando eu a digo pela primeira vez, a reação imediata dos meus ouvintes é susto, seguido por riso... "Não é possível que o Rubem esteja falando sério. Essa é mais uma de suas brincadeiras..." Não, não é brincadeira. Estou falando sério e peço que vocês, meus leitores, ponham-se a repetir: "A princípio, estranha-se. Depois, entranha-se"... Peço que vocês tenham para com minha idéia estranha a mesma atitude que tiveram diante da estranha Coca-Cola.

Tudo começou há muitos anos, na Unicamp, quando um grupo de amigos se reuniu para estudar a possibilidade de um vestibular inteligente. Porque esse que existe não é inteligente. Pelo contrário.

Minha amiga Vilma Clóris de Carvalho, educadora extraordinária, professora de neuroanatomia, revelou-me que seus piores alunos eram aqueles que tinham obtido as notas mais altas no vestibular. "Eu explico a complexidade do funcionamento do aparelho nervoso, mostro-lhes o caráter provisório das hipóteses de que dispomos, falo sobre uma, falo sobre outra... E aí há sempre um desses gênios que tiraram as notas mais altas que sai com a pergunta: 'Mas, professora, qual é a resposta certa?'"

Ah! Essa simples pergunta contém um mundo de desensinos... Nós queríamos um vestibular que fizesse bem à inteligência, que testasse a capacidade dos alunos de pensar diante de situações novas, em oposição àquele que privilegiava a memória mecânica e as respostas certas.

Um dia, num intervalo entre as discussões, o meu amigo professor Yaro Burian Jr., engenheiro do ITA, me disse com um sorriso: "A melhor solução é o sorteio...". Estranhei. Refuguei. "O Yaro devia estar me gozando. Sorteio, coisa injusta. Vai privilegiar os incompetentes." Ri. Aí ele não explicou nada e só me disse: "Pense".

Pus-me a pensar e não parei até hoje. Ao estranhamento, seguiu-se o entranhamento. Hoje, eu repito: "O sorteio é a solução mais inteligente e mais educativa". Agora, eu preciso explicar o caminho do meu pensamento.

Funções manifestas e funções latentes são conceitos criados pelo sociólogo Robert K. Merton (1910-2003). Esses conceitos são ferramentas de pensamento que sempre me ajudam a pensar. Vou explicar o seu sentido (que é o mesmo que dizer "vou explicar o seu uso"; o sentido de uma idéia é o uso que fazemos dela).

Pergunta: "Qual é a função da exigência de que, para ser aprovado, o aluno tenha de ter frequentado 75% das aulas?". Resposta da função manifesta: "A frequência a 75% das aulas é uma condição para manter a qualidade do ensino". Resposta da função latente: "A frequência a 75% das aulas é uma condição para que os professores medíocres e incompetentes tenham sempre alunos em suas aulas, que, de outra forma, estariam vazias, livrando-os, assim, da vergonha"...

Funções latentes correspondem aos efeitos colaterais das bulas dos remédios: função manifesta, curar; função latente, pode matar...

Qual é a função manifesta dos exames vestibulares? O nome está dizendo: vestíbulo. Vestíbulo é lugar de entrada. Exames vestibulares: exames para conseguir entrar no lugar desejado. Mas a minha atenção não se interessa por essa função manifesta. Interessam-me suas funções latentes, seus efeitos colaterais de que poucos se dão conta.

Assim, ao falar de exames vestibulares, eu não olho para a frente, para a universidade. Olho para trás e contemplo que a sua sombra enorme está cobrindo todos os processos escolares que os antecedem. Observo a progressiva instalação dos processos de tortura a que crianças e adolescentes têm de se submeter, tirando toda a alegria da experiência de aprender. Meu espaço acabou. Mas fica este "dever de casa": identificar a presença e o poder da "sombra enorme"...

(Continua.)

Rubem Alves, quase 70, é psicanalista e educador. Sobre suas idéias sobre os
exames vestibulares, recomenda o livro que escreveu para crianças "No País dos
Dedos Gordos" (Edições Loyola).
Site: www.rubemalves.com.br

     

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