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24/06/2003 - 03h19

Perfil: Uma cientista dos genes e da família

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

É difícil acreditar que alguém de conversa tão ponderada quanto a bióloga Mayana Zatz, 55, goste de arrumar encrenca. Mas a lista de suas "brigas", como ela costuma dizer, é bem respeitável. Ao contrário de boa parte de seus colegas no Brasil e no exterior, a pesquisadora consegue conciliar trabalho de qualidade em genética, uma das áreas mais competitivas da ciência do século 21, com os espinhosos problemas éticos que a compreensão crescente do DNA humano não pára de suscitar —dos que ainda parecem uma sombra no futuro próximo, como a clonagem, aos que já tiraram o sono de mais de uma geração, como o direito de interromper uma gravidez.

Fotos Cris Bierrenbach/Folha Imagem
A bióloga Mayana Zatz
Hoje à frente do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da USP, Mayana ocupou posição de destaque na verdadeira revolução genômica que varreu a ciência brasileira no final dos anos 90, transformando o país no segundo maior decifrador de sequências de DNA no GeneBank, banco de dados público em que geneticistas do mundo todo disponibilizam suas análises brutas.

Apesar dos avanços do presente, ela se lembra bem do tempo em que ninguém pensava em soletrar nem sequer alguns dos 3 bilhões de pares de "letras" químicas que compõem o DNA humano. "Naquela época, ninguém imaginava que se poderia analisar DNA, estudar DNA. Eram só exames bioquímicos", recorda.

A limitação imposta pela tecnologia dos anos 70 não diminuiu o entusiasmo da então aluna do científico (um dos ancestrais do atual ensino médio) pela genética, que a fez desistir de ser médica e cursar biologia. O interesse pela ciência surgiu ainda na infância, lendo biografias de pesquisadores como o francês Louis Pasteur (1822-1895), "sempre sobre coisas aplicadas", lembra.

Raio-X

Nome: Mayana Zatz
Idade: 55 anos
Família: casada, dois filhos
Formação: bióloga com mestrado e doutorado pela USP (especialização em doenças neuromusculares) e pós-doutoramento na Universidade da Califórnia em Los Angeles (EUA)
Profissão: professora e coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano do Instituto de Biociências da USP
Hobbies: "Além de pesquisa, faço cooper. Corro de cinco a seis quilômetros por dia"


Além da inspiração de Pasteur, Mayana herdou da França um leve sotaque quando pronuncia os erres, por ter vivido no país entre dois e sete anos de idade. Os pais da bióloga, judeus romenos, fugiram para Israel durante a Segunda Guerra Mundial, e foi lá que Mayana nasceu, em 1947. Depois da breve temporada na Europa, a família veio para São Paulo e "se apaixonou" pelo Brasil, segundo ela. Da tradição judaica, a pesquisadora diz ter herdado principalmente o apego à educação. "Faculdade era o mínimo que a gente tinha de fazer", recorda.

Como muitos biólogos de sua geração, Mayana contou com a inspiração de um dos pioneiros da genética no Brasil, Oswaldo Frota-Pessoa. "Ele nos fazia participar de todas as atividades, inclusive do aconselhamento genético [para casais com risco de terem filhos com doenças genéticas], e logo comecei a me interessar por doenças neuromusculares."

Esses males, dentre os quais um dos mais conhecidos é a distrofia de Duchenne, estão ligados a mutações no DNA e podem ser passados de mães portadoras (clinicamente normais) para seus filhos, causando a degeneração progressiva dos músculos e a morte, se o doente não receber cuidados muito especiais. O trabalho a envolveu tanto que se seguiram mestrado e doutorado na USP e pós-doutoramento na Universidade da Califórnia em Los Angeles (EUA). Nesse meio tempo, ela continuava também dedicando seu tempo ao aconselhamento genético.

E foi justamente nesse campo que surgiu a primeira das "brigas" de Mayana. "Quando voltei dos Estados Unidos, eu quis saber o que tinha acontecido com aquelas famílias todas que a gente tinha aconselhado. O trabalho de laboratório, bioquímico, e o de sentar e conversar com as famílias, tudo isso estava tendo algum impacto na vida delas? Resolvi, então, revisitar 300 famílias depois de um ano", conta. "E foi uma surpresa muito boa, porque realmente a maioria das famílias de alto risco tinha evitado o nascimento de outras crianças."

Pipetas para manipular amostras e filme de raio-X com análise de DNA, no Laboratório de Estudos do Genoma da USP

O problema foi verificar o lado negativo da situação: as crianças com problemas neuromusculares que já tinham nascido estavam praticamente abandonadas, sem poder sair de casa ou frequentar escolas por falta de uma simples cadeira de rodas. "Eram crianças de inteligência normal, totalmente afastadas do convívio social", frisa Mayana. A bióloga fundou então, em 1981, uma associação para pessoas com distrofia muscular. "Comecei a arrecadar fundos, a fazer o escambau. A sede era na minha sala no Departamento de Biologia", recorda.

Hoje, a associação atende cem crianças em São Paulo, mas a pesquisadora afirma que ainda falta muito para que as pessoas com problemas semelhantes e sem recursos tenham qualidade de vida decente. Um dos objetivos da pesquisadora é sensibilizar as autoridades para facilitar o acesso dos doentes aos "bipaps", aparelhos que auxiliam a respiração quando o músculo do diafragma, que mantém os pulmões funcionando, começa a se enfraquecer. "O Brasil se orgulha tanto de seu programa contra a Aids. Por que também não pode apoiar esses doentes? As doenças neuromusculares afetam uma em cada mil pessoas, quase 200 mil brasileiros", argumenta.

É o mesmo engajamento que leva Mayana a defender as pesquisas com células-tronco embrionárias humanas. As células-tronco são verdadeiros curingas biológicos, capazes de se diferenciar em vários tipos de tecido do corpo. Embora as encontradas na medula óssea de adultos ou no cordão umbilical de recém-nascidos tenham se mostrado bastante flexíveis, muitos pesquisadores acreditam que só as células-tronco embrionárias são capazes de regenerar qualquer tecido ou órgão, representando esperança de cura para muitas doenças degenerativas. Contudo, obtê-las significa destruir o embrião de onde são retiradas e, por isso, seu uso continua proibido no Brasil.

"A gente está fazendo pesquisa com células de cordão umbilical, e, obviamente, a coisa que a gente mais quer é que funcione, mas, se não funcionar, vai ser preciso partir para as embrionárias", diz a bióloga.

É com base na possibilidade de cura oferecida pelas células-tronco umbilicais que Mayana está buscando apoio para a criação de bancos públicos dessas células. "Se você tiver alguns milhares de amostras de cordão, a chance de achar um doador compatível é de 100%. Hoje, a gente já sabe que esse é o melhor tratamento para a leucemia. Só isso já justifica o esforço", afirma. "Muita gente está fazendo banquinho particular de cordão do próprio filho. O que as pessoas não sabem é que, para uma doença genética, isso não serve —mais um motivo para criar o banco público, com um banco de dados bem-feito, que acompanhe o histórico médico das pessoas."

O trabalho de aconselhamento genético continua atendendo pessoas do Brasil todo e de outros países sul-americanos. Os pesquisadores levantam a genealogia de cada paciente e, após determinar a chance dele e de seus parentes de herdarem uma doença genética, fazem os testes necessários para confirmar se ele é portador. Com base nessa experiência, Mayana não hesita em se posicionar a favor do direito dos pais de interromper a gravidez, em certos casos.

"Abortar por outros motivos é uma outra questão. Mas, por problemas genéticos, eu sou totalmente a favor. Se existe o teste genético, se você pode detectar com oito ou dez semanas de gestação que aquele feto vai ter uma doença grave, irreversível, eu acho que você tem de ter o direito de optar e dizer: 'Não quero colocar no mundo uma pessoa condenada a sofrer'. E há outra coisa que eu sempre digo: a possibilidade de você oferecer um diagnóstico pré-natal está salvando muitas vidas normais. Porque era comum que a mãe dissesse: 'Se você não me garantir que o meu feto não vai ter a doença, eu vou interromper a gestação'. Antes de a gente ter esses exames, muita gente fazia isso por medo."

Acompanhar famílias com doentes ou portadores por décadas também não deixa de criar coincidências mais alegres. "Certa vez, um moço veio até aqui desesperado porque a mulher dele estava grávida e três dos irmãos dele tinham morrido com atrofia muscular. Perguntei o nome dos três irmãos e, então, disse a ele o nome da sua mãe. O rapaz olhou pra mim como se eu fosse uma bruxa. É que ele era de uma família que eu tinha visitado em casa, nas minhas peregrinações atrás de afetados. Eram uns nomes diferentes, e eu me lembrei. No fim, ele não tinha risco nenhum de transmitir a doença e ficou emocionadíssimo depois de ver que eu não era uma bruxa."

Tão inesperado quanto essa coincidência, para Mayana, foi o fato de ser uma das vencedoras do Prêmio L'Oréal/Unesco Mulheres na Ciência, oferecido anualmente pela multinacional de cosméticos e pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura).

Indicada pelo amigo Leopoldo de Meis, bioquímico da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a pesquisadora ganhou US$ 20 mil como primeira colocada da América Latina e o reconhecimento por seu trabalho acadêmico e social; hoje, ela é um dos 13 membros do júri (cujos presidente e vice-presidente são vencedores do Nobel). Meis não tem dúvidas sobre o valor do trabalho da colega: "Ela tem contribuído de forma decisiva para a compreensão das doenças musculares de origem genética", avalia o bioquímico. "Ela soube transcender a torre de marfim da academia", elogia Sergio Danilo Pena, geneticista da Universidade Federal de Minas Gerais.

Diante dos dilemas oferecidos pela clonagem humana, Mayana é pragmática. "Hoje, isso é impensável. É um risco que você não pode correr de jeito nenhum. Não faz nem sentido discutir problema ético, religioso, quando a gente sabe que o risco biológico é gigantesco. É a mesma coisa que fazer uma discussão do tipo: 'Vamos dar esse remédio para uma pessoa sabendo que ele mata?'", compara. "Se, no futuro, for seguro, então será preciso pensar nos outros problemas. Agora, a gente não vai conseguir impedir isso, porque a curiosidade humana é uma coisa muito forte. Nas clínicas particulares, por exemplo, quem é que vai impedir?", pondera.

"O que não é motivo para não pensar na produção de órgãos e tecidos, só por medo de que se crie um clone humano. Toda vez que sai um anúncio desses, os pesquisadores sérios é que se complicam, como aconteceu com aqueles ridículos dos raelianos [seita fundada pelo francês Claude Vorilhon, que assumiu o nome Raël e afirma que a imortalidade será alcançada por meio da clonagem]. Quando me ligavam para pedir minha opinião sobre esse caso, eu dizia: 'Façam o favor de ignorar esses caras'", conta.

Seja como for, a bióloga afirma ser difícil vislumbrar fronteiras para o que poderá ser feito no futuro. "Eu acho que existe um potencial ilimitado. Uma explosão científica e tecnológica que tem permitido fazer pesquisas que a gente nem poderia imaginar há 30 anos. Num congresso de que participei, por exemplo, alguém se levantou e disse: 'Imagine uma mulher na menopausa ou que perdeu o ovário por causa do câncer. Ela faz um feto clonado dela mesma, retira os óvulos e os junta a um espermatozóide para poder se reproduzir'. Isso me choca, mas é uma coisa possível. E nós temos de estar preparados para lidar com essas questões."

Se o bom e velho debate público e democrático precisa desempenhar seu papel costumeiro para ajudar a sociedade a decidir sobre tais dilemas, Mayana afirma que outro elemento não pode ser ignorado: "As pessoas com doenças genéticas na família têm de ser ouvidas. Isso é uma coisa que eu sinto todo dia, quando converso com eles sobre o uso de células-tronco embrionárias: sempre querem saber quando isso vai ser liberado e o que eles podem fazer para ajudar", conta.

Embora diga, brincando, que já está com problemas de DNA ("data de nascimento antiga"), Mayana tem fôlego para correr vários quilômetros por dia, geralmente acompanhada de sua cadelinha Mini. "Todo mundo morre de rir, porque ela é de uma raça [mini-schnausser] que não corre", diverte-se. "Correr traz um monte de benefícios. Aumenta o pique, descarrega a energia negativa, e eu resolvo muitas coisas enquanto corro."

O cotidiano de Mayana, durante a semana, se divide entre o atendimento a pacientes e as aulas de genética médica (cada um ocupando um dia da semana), discussões com alunos, trabalhos científicos, "muitas palestras e zilhões de e-mails", afirma. Nos fins de semana, como tantos paulistanos, a bióloga sai para comer fora ou vai ao cinema com o marido, mas nem por isso deixa o trabalho totalmente de lado.

"Eu quero morrer trabalhando. A grande vantagem de ser cientista é que você sempre tem perguntas. Cada pergunta que você responde abre um leque de outras perguntas, e é isso que te move, essa é a graça da vida, é você ir atrás dessas perguntas. Enquanto algumas pessoas se divertem lendo fofocas sociais, a gente se diverte dizendo: 'Olha, esse DNA interage com aquele'. É a diversão do cientista", brinca.

     

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