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29/07/2003 - 03h02

Parar para mudar

JOÃO LUIZ VIEIRA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Depois de passar duas décadas trabalhando no departamento de RH de grandes empresas, a socióloga Cláudia Chianca Nucci, 48, viu seu nome na lista de cortes da folha de pagamento. Isso, há três anos. Empurrada à força para um sabático, ela descobriu que a parada poderia trazer mais benefícios que prejuízos a sua carreira.

Francesc Guillamet/Divulgação
Ferran Adrià Acosta: "Foi o tempo que tirei para organizar meu trabalho de novo. Foi um recomeço"

"A questão da idade complicou minha vida. Durante três meses, ainda tentei arranjar um novo emprego, mas as remunerações eram muito baixas", afirma. "Não sabia para onde ir e decidi buscar o que eu mais gostava de fazer." Ficou um ano e meio remoendo aptidões e, ao final do processo, descobriu que não daria mais expediente diário para ninguém. Viveria de projetos.

Deu tão certo que Cláudia foi convidada para reciclar outros. No caso, professores universitários. "Não tinha qualquer prática de sala de aula, mas aceitei o desafio e descobri outras potencialidades", diz. "Fui em busca do meu prazer." Mesmo sendo um trabalho sazonal, fez as contas e está ganhando mais do que quando trabalhava com carteira assinada.

O sabático não é exatamente uma novidade. Em uma frase, pode-se dizer que é a interrupção da atividade profissional com o propósito de renovação e reciclagem. Sua origem é bíblica. O termo vem do hebraico "shabbath" ou "sabbaticu", em latim, que define o dia semanal de descanso dos judeus, adaptado ao calendário ocidental.

Mas o sabático pode ser bem planejado. O empresário Herbert Steinberg, 47, resolveu parar em 1999. Com uma experiência profissional extensa —que passa pela vice-presidência de recursos humanos do Banespa pós-privatização e pelas diretorias de RH do Citibank e do McDonald's—, Steinberg decidiu, há 4 anos, jogar a agenda para o alto.

O estalo aconteceu pela primeira vez em 1985, quando, em visita de trabalho a uma multinacional em Chicago (EUA), ficou sabendo que um dos executivos que procurava só retornaria ao escritório dali a seis meses por estar em período sabático. "Como assim?", pensou. Interessado, foi atrás de respostas para aquele longo período de afastamento, que não era férias nem licença médica. "Normalmente, as pessoas só tomam atitudes assim em momentos de crise", afirma. "Existe um medo em olhar para si próprio."

Steinberg investiu seu período de reciclagem em uma viagem. "As pessoas sempre arranjam duas desculpas para não parar: falta de tempo e dinheiro", conta. Na volta —o empresário fez a peregrinação de Santiago de Compostela, na Espanha—, escreveu dois livros sobre o assunto: "Sabático Um Tempo para Crescer" e "Um Executivo no Caminho Da Razão ao Coração". "É preciso planejar o sabático, senão pode-se voltar com novos problemas", ensina.

A idéia do período de reciclagem é se afastar da rotina para estudar, trabalhar ou pensar naquilo que gosta para, na volta ao dia-a-dia, reoxigenar a própria vida e a de quase todos ao redor. Assim fizeram o ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, 45, que passou o ano de 1995 estudando em Harvard, o ex-candidato à presidência da República José Serra, 61, que está atualmente em Princeton, também estudando, e Luiz Seabra, 61, sócio-fundador da Natura, que garante ser outro depois dos dois sabáticos que viveu. Sim, dois.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Cláudia Chianca Nucci: "Não sabia para onde ir e decidi buscar o que mais gostava de fazer"
"O corte no tempo foi um movimento interior", diz Seabra, que está a frente dos negócios da empresa há 35 anos. O tal movimento começou a reverberar quando ele completou 40 anos. "Minha empresa já tinha êxito e uma certa relevância, e percebi, ao mesmo tempo, que precisava reinventar minha alma." Negociada a ausência com as partes interessadas, Seabra definiu os seis meses de afastamento como o momento em que ele teve de "lidar com as questões da existência". Visitou, assim, os lugares que sempre quis conhecer com espírito "desarmado". E leu, leu muito. Sobre tudo.

O segundo período sabático foi em Londres. Seabra acredita que é preciso uma distância geográfica quando se pensa em longas pausas, para desconectar-se por completo. "É um período de amadurecimento, libertário, a busca do sentido para a existência", diz. "Sabático não é coisa de gente de meia-idade, serve a qualquer um que dispõe de meios para garantir a subsistência."

Grandes nomes internacionais também investem no período de reciclagem.

Ferran Adrià Acosta é um chef de cozinha que trabalha muito —de abril a setembro. Nos outros meses, todos os anos, ele se exila para estudar e aprimorar suas habilidades profissionais. Na prática, o chef catalão mais badalado do momento se permite um sabático anual para inventar novas receitas e criar novas combinações gastronômicas.

Conhecido como "o desconstrutor", Adrià, 41, comanda a cozinha do restaurante El Bulli há 20 anos. Localizado a 170 km de Barcelona, na Espanha, o empreendimento sofreu sua "revolução gastronômica" quando o chef resolveu parar pela primeira, em 2002. "Foi o tempo que tirei para planejar e organizar todo meu trabalho de novo. Foi um recomeço", disse à Folha de S.Paulo. "Nesse período, pude pensar para onde ir."

De um cardápio francês, Adrià redescobriu a gastronomia e voltou com novas receitas, segundo as quais gelatinas e sorvetes podem ser servidos quentes, e caipirinhas e sopas, em estado sólido. Uma fórmula que tem dado certo: para ocupar uma das 45 cadeiras do restaurante, a reserva tem de ser feita com um ano de antecedência.

No Brasil, a maior parte das empresas ainda é conservadora em relação a criar oportunidades de períodos sabáticos para funcionários. As negociações podem durar meses e nem sempre são bem-sucedidas. "O sabático é pouco factível no Brasil", afirma o consultor José Antônio Rosa, 50, que oferece serviços à Manager, uma empresa de recrutamento de empresários, e é autor de 20 livros que tratam de administração de carreira. "Os grandes empresários não gostam dessas novidades", diz.

Para o consultor, a empresa contrata o funcionário para trabalhar em determinada função e quer que a máquina gire. Fora isso, há as conexões com a equipe, que são prejudicadas em períodos sabáticos. "É uma quebra na carreira, um desaquecimento e um risco para quem o contrata."

Rosa defende que o sabático é mais aconselhável para o indivíduo especializado. Ele tem dúvidas quanto ao executivo, "que, como o nome diz, pede ação". Na opinião do consultor, as pessoas mais reflexivas perdem em competitividade. "O mais objetivo pega uma idéia, mobiliza um grupo, lidera e executa. No mundo rápido de hoje, o executivo não pode se sustentar em especulações."

Karin Parodi concorda em parte. Sócia da Career Center, empresa que faz planejamento de carreira para executivos, ela diz que a maioria das queixas dos grandes líderes, hoje, é a falta de tempo para repensar a vida. "Uma coisa é querer, outra é o privilégio de poder se afastar", afirma. Karin não sabe pontuar quantos dos executivos que contatou entraram em sabático, mas estima que cerca de 30% gostariam de poder parar. A certeza é que o planejamento precisa ser feito com antecedência para poder abrir as negociações com todas os interessados. "Acontece mais com gente que quer mudar de área e se dá esse tempo. Alguns chegam a pedir demissão", conta.

Carmem Lúcia Rittner, 57, psicóloga do trabalho da PUC-SP, vê um certo exagero quando se fala de perdas profissionais em períodos sabáticos. "É imprescindível o tempo para a reavaliação, para o entendimento do seu ambiente, do momento e da transformação da sociedade e da empresa", diz. "A partir daí, estabelece-se um plano de autodesenvolvimento, de meta pessoal."

Para a psicóloga, "refletindo, o profissional se posiciona melhor e agrega mais interesses". "Às vezes, ser rápido pode atrair decisões equivocadas. Necessário é mesclar ação e reflexão, o que quer dizer, em suma, maturidade e equilíbrio." Para Lúcia, portanto, a empresa só teria a lucrar com iniciativas como essa a curto e médio prazos.

     

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