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29/07/2003 - 03h04

O bê-á-bá na faculdade

BRUNO LIMA
free-lance para a Folha de S.Paulo

São 17h30 em uma sala de aula, e universitários aprendem a usar o dicionário. Passaram pelo ensino fundamental, pelo ensino médio e chegaram à universidade com grande desconhecimento da língua portuguesa. Têm dificuldade, sobretudo, em interpretar e redigir textos —são criativos e cheios de idéias, mas nem sempre sabem como colocá-las no papel. Mas o mais importante: embora ainda desconheçam os caminhos para superar esses obstáculos, começam a se dar conta de como esse desconhecimento é prejudicial.

Fotos Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Alunos da PUC-SP que prepararam um dicionário de informática e internet

O pai-dos-burros está sobre a mesa, e a professora incentiva o hábito de utilizá-lo. Quando surge uma dúvida, aponta para o livro. Ela ajuda a compreender os verbetes —mostra que tipo de respostas podem ser encontradas em uma simples consulta. Isso é rotina na oficina de produção textual que acontece no campus da Unicid (Universidade Cidade de São Paulo), para alunos de todos os cursos, fora do horário normal de aulas. Como atividade extra e gratuita, pode ser procurada por quem tem interesse em melhorar o português.

Sem se identificar, a reportagem da Folha de S.Paulo assistiu a cinco aulas de português em universidades na cidade de São Paulo para entender a forma como são ensinados os conteúdos. Depois, identificou-se para alguns alunos, entrevistando-os.

Na Universidade São Judas, a opção adotada foi a inclusão das aulas de língua portuguesa no currículo de todos os cursos. Nesse modelo, com o português "obrigatório", professores se empenham para entrar no universo dos alunos e das áreas específicas. Em desenho industrial, a tarefa do dia era escrever um texto "ao estilo barroco".

Na classe, entre uma e outra cara de preguiça, até a reportagem teve dificuldade na redação. A idéia do professor era justamente causar dúvidas. "Por que tenho de saber isso?", pergunta uma aluna. A resposta vem da primeira fila, de outro aluno. "Para nós, é muito importante saber interpretar estilos."

Já no curso de engenharia civil, a proposta é ler obras literárias como "O Cortiço", de Aluísio Azevedo, com olhos de "profissional". São feitos exercícios de descrição técnica de ambientes e construções que aparecem na história. A habilidade de descrever, dizem os alunos, é útil no estudo de outras disciplinas do curso e no mercado de trabalho.

No canto da sala, o professor Everaldo José de Campos Pinheiro, 55, prega no quadro um anúncio de jornal. É um recorte dos classificados, ampliado por computador. O texto diz claramente: "Empresa procura engenheiro que saiba falar e escrever bem".

"Qual é a diferença entre poesia e prosa?", pergunta um dos alunos. Alguns risinhos, e os estudantes fazem silêncio, como se ninguém soubesse a resposta. O professor responde com naturalidade e emenda: "Não se intimidem, perguntem mesmo".

O professor Everaldo Pinheiro, que ensina português em um curso de engenharia
"É comum isso acontecer, faço de conta que é normal", explica o professor durante a entrevista. "Há coisas bem primárias, que eles já deveriam ter aprendido. São dúvidas que deveriam ter sido tiradas na época certa, mas não foram", diz. Pouco depois, ele se corrige. "São dúvidas que eles deveriam ter tido na hora certa, mas não tiveram. Fica difícil saber de quem é a culpa. Tentar mudar isso é o que importa."

"Vim para engenharia porque nunca gostei de aula de português", diz o aluno Fabiano Pedrassani, 21. A disciplina, entretanto, tinha um encontro marcado com ele no terceiro ano do curso universitário. "No segundo grau, a gente não dá importância, aprende para esquecer assim que a prova acabar. Mas não tem jeito, não vou ter um bom emprego sem o português. Fiz um processo seletivo com prova de conhecimentos técnicos, inglês, informática e dinâmica de grupo. Na última fase, venceu quem fez a melhor redação."

Projetista, ele diz que tremia quando um superior pedia um relatório. "Eu tinha muita dificuldade para fazer uma carta." Nas aulas, diz que conseguiu identificar suas próprias falhas. "Agora sei os erros que cometo e as dificuldades que tenho. Isso é importante", afirma. "A gente faz sete matérias de cálculo. Com certeza, vou usar mais o português." Segundo ele, o professor ganhou sua confiança quando perguntou, no primeiro dia de aula, o que a turma queria aprender. "Ele está seguindo o que pedimos."

Na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), há aulas de "português instrumental" em cursos como enfermagem, serviço social, ciências contábeis e ciências econômicas. Em direito, profissão em que a escrita é tida como ferramenta essencial de trabalho, a aposta para conquistar os alunos é em aulas bem específicas. Na disciplina redação e linguagem jurídica, dada no primeiro ano do curso, os futuros advogados, que ainda pouco sabem de doutrina jurídica, tentam se recuperar no que se refere a comunicação e expressão.

Em classes de cerca de 30 alunos —nas demais aulas, a média é 60—, os estudantes assistem à aula em clima descontraído. "Isso não significa descompromisso", diz a professora Lílian Ghiuro Passarelli.

Um dos objetivos da aula, conta a professora, é que os alunos aprendam a usar os recursos da língua a seu favor, melhorando sua capacidade de argumentação sem se perder em frases vazias, carregadas de jargões jurídicos. O resultado, diz ela, pode ser sentido nas exposições orais e na redação de peças processuais, como petições e recursos. "Trabalhamos a adequação do uso da linguagem às diferentes situações."

No curso de tecnologia e mídias digitais, a aula de português também utiliza uma estratégia interessante para vencer a resistência dos alunos: eles tiveram de preparar um dicionário de verbetes ligados à informática e à internet. O universitário Wagner da Silva Araújo, 31, teve de explicar a expressão de webdesign "repetição de elementos". Nas aulas, diz ter aprendido boas técnicas de resumir textos. "Tive muita dificuldade com a língua portuguesa, mas sempre gostei de escrever e criar coisas. Depois de começar o curso de redação na faculdade, percebi o quanto tinha deixado de aprender na escola", afirma.

Para Rafael Santos Sinegalia, 21, que teve de traduzir o que é a linguagem Action Script, as aulas servem como complemento, já que o ensino na rede pública deixa a desejar. "Se eu dependesse só do que aprendi na escola, não saberia metade do que sei. Ainda bem que gosto de ler."

De acordo com o Semesp (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior do Estado de São Paulo), as oficinas de texto se espalharam entre as instituições particulares de ensino superior. A entidade não dispõe de uma estatística precisa, mas afirma que uma parcela considerável das cerca de 300 instituições ligadas a ela tem atividades dessa natureza.

Em algumas universidades, como a Uninove, as aulas extras não se limitam ao português. O "resgate de conteúdos", utilizado para recuperar matérias consideradas elementares, é dado pelo menos para três disciplinas do ensino fundamental e médio —matemática, português e física.

Em redações dos alunos a que a Folha de S.Paulo teve acesso, em diferentes faculdades, há problemas de concordância, ortografia e mesmo de separação de sílabas. Mas o principal desafio é expressar, com coesão, coerência e clareza, as idéias em forma de texto.

Na oficina de texto da Unicid, há espaço para tirar até mesmo as dúvidas "mais imbecis" sem passar vergonha. "Com a oficina, percebemos que as dificuldades são grandes, são estruturais, mas vimos que os alunos querem aprender", afirma a professora Edna Guerra Paes Manso. Um dos objetivos da atividade, conta ela, é que o aluno desenvolva seu texto e, paralelamente, tire o atraso com relação à norma culta. "O que costuma ocorrer é que, na hora de escrever, o aluno fica preocupado se determinada palavra é com z ou s, e a idéia vai embora."

No Escreve Cartas, serviço criado pelo governo do Estado de São Paulo para redigir cartas para analfabetos, também existe atendimento a universitários. No posto de atendimento do Poupatempo Itaquera (zona leste de São Paulo), a estudante de ciências biológicas Monica Silva Peres, 20, pede ajuda de um monitor para redigir uma carta "mais formal" para concorrer a um emprego. "Não sabia bem como fazer. Aqui me ajudaram com os padrões", explica ela. O programa informou que atende qualquer pessoa com dificuldade de se expressar por meio de cartas. Entre os universitários, as principais solicitações são para redigir currículos e cartas de apresentação para vagas de emprego.

     

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