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29/07/2003 - 03h06

Verbete: Quem vai pagar a conta?

MARCELO BILLI
da Folha de S.Paulo

Dizem os ingleses que, no século 11, lady Godiva cavalgou nua pelas ruas de um pequeno povoado do país. Ela queria que o marido baixasse os impostos que cobrava dos camponeses da região.

Reprodução
As disputas entre contribuintes e governo sobre o quanto é justo pagar de impostos nem sempre são tão espetaculares quanto a história —ou lenda segundo alguns— de Godiva. Mas, desde o século 11, os Estados nacionais cresceram, as necessidades e exigências dos cidadãos se multiplicaram, e os sistemas tributários ficaram mais complexos.

Talvez seja essa complexidade que faça com que a reforma tributária seja motivo de discussões acaloradas entre políticos e especialistas e, ao mesmo tempo, acompanhada de longe e com certa perplexidade pela população.

A primeira pergunta na qual alguém deve pensar quando o governo vai decidir algo novo sobre o sistema tributário é se vamos passar a pagar menos impostos. No caso brasileiro, a resposta é não. O motivo é simples: o governo tem um acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional) segundo o qual tem de economizar recursos. Se quiser cumprir o acordo e algumas das promessas de campanha, o atual governo terá de preservar ao máximo sua arrecadação.

A reforma discutida pelo governo vai alterar alíquotas e forma de arrecadação de impostos sobre consumo, mudar a forma como os governos municipais e federais dividem a arrecadação e tornar alguns impostos mais progressivos —ou seja, a alíquota será maior quanto maior o valor envolvido. Mas o grosso da mudança são as alterações no ICMS (Imposto sobre a Circulação de Mercadorias e Serviços) recolhido pelas empresas.

Individualmente, pessoas ou empresas podem passar a pagar menos por conta das mudanças previstas na reforma —em alguns Estados, por exemplo, a alíquota do ICMS vai baixar, o que pode tornar alguns produtos mais baratos. Mas, como um todo, a sociedade brasileira continuará pagando o mesmo ou, caso a tendência dos últimos anos prossiga, mais do que tem pagado nos últimos anos.

É muito? Os brasileiros entregaram ao governo, em 2002, mais de um terço (36%) do PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. Ou seja, para cada real de renda criada no ano, o brasileiro pagou, em média, R$ 0,36 em impostos.

Mas dizer se isso é muito ou pouco depende de fatores um pouco subjetivos. Canadenses, franceses e espanhóis, por exemplo, pagam, proporcionalmente, tanto ou mais do que os brasileiros.

Há os que avaliam que o Estado brasileiro é uma espécie de monstro arrecadador e ineficiente. E argumentam, por exemplo, que os serviços prestados pelo governo dos EUA aos seus cidadãos são muito melhores do que no nosso caso. E os norte-americanos entregam ao governo menos de 30% do PIB! Mas em 1999 os EUA arrecadaram US$ 2,6 trilhões, ou US$ 9.000 por habitante. No caso brasileiro, a arrecadação foi, no mesmo ano, de aproximadamente US$ 1.000 per capita.

O governo brasileiro tem menos dinheiro do que o dos EUA e mais problemas para resolver. Então é justo que cobre mais em termos relativos? Seria, desde que ele obedecesse alguns limites. Os tributaristas costumam dizer que há dois grandes princípios que os governos devem obedecer: o da equidade e o da neutralidade.

O da equidade diz que cada cidadão deveria contribuir de acordo com a sua capacidade. Ou seja, se o empresário Antônio Ermírio de Moraes comprasse um quilo de arroz, esse princípio diz que ele deveria pagar mais impostos do que uma faxineira da Votorantim.

A neutralidade deveria garantir que os impostos interferissem o mínimo possível na decisão dos agentes econômicos. Em outras palavras, um empresário deveria decidir no que e como investir, de acordo com oportunidades de negócio, competitividade e lucro, e os impostos não deveriam mudar esta decisão.

O sistema brasileiro é justo? Não. A maior parte da arrecadação vem de tributos sobre o consumo ou o faturamento das empresas. É o tipo de imposto que faz com que pessoas como Ermírio de Moraes e a faxineira da Votorantim paguem o mesmo tributo.

Existe um imposto justo? Existem impostos mais ou menos justos. O imposto de renda, por exemplo, é considerado mais justo do que impostos sobre consumo: quem ganha mais paga mais, quem ganha menos contribui com alíquotas menores.

O sistema brasileiro é neutro? Também não. Basta lembrar a guerra fiscal entre governos estaduais ou cidades que brigam pelas sedes de empresas de serviços cobrando menos impostos.

A atual reforma diminuirá os problemas, mas estará longe do ideal. Mesmo porque o ideal não existe. Apesar do esforço dos economistas por imaginar como ele seria, a maneira como governos arrecadam tem mais a ver com sua história e sociedade do que com princípios rígidos.

Nosso imposto do cheque é, aos olhos dos economistas, uma aberração. Mas é de fácil aplicação e muito eficaz num país em que grande parte da população trabalha na informalidade.

Os resultados da atual reforma são incertos. Diz-se que ela tornará as empresas mais competitivas, que ajudará o país a crescer mais. O novo sistema tributário, no entanto, será resultado de uma forte disputa, com lobistas com idéias muito distintas do que é o ideal.

Os contribuintes não deviam ficar alheios, já que o assunto tem, e muito, a ver com o bolso de todos. E não há razão para não ser otimista. Dizem que a senhora Godiva conseguiu o que queria e que, por muito tempo depois de sua morte, a média de impostos cobrada em seu povoado foi menor do que no resto da Inglaterra.

Marcelo Billi, 28, economista, é repórter do caderno Dinheiro. Apesar de entender que o governo precisa arrecadar impostos, fica nervoso quando vê o desconto do Imposto de Renda em sua folha de pagamento.

     

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