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29/07/2003 - 03h08

Perfil: Presente de Natal

MARCELO LEITE
Editor de Ciência da Folha de S.Paulo

Nada parece mais metaforicamente correto do que um neurocientista de fama internacional à frente de uma iniciativa para reverter a fuga de cérebros do Brasil —que, na década de 90, perdeu 5% das cabeças doutoradas do país, uma média de 140 por ano, a R$ 300 mil por unidade. A proposta ambiciosa de Miguel Angelo Laporta Nicolelis, no entanto, ainda é percebida em Natal —escolhida para sediar um centro de pesquisas do cérebro de nível internacional— como uma prótese recém-adquirida à qual o portador de deficiência não teve tempo de adaptar-se. E uma prótese para lá de cara, que custaria "várias dezenas de milhões de dólares".

Ricardo Junqueira/Folha Imagem
O neurocientista Miguel Angelo Laporta Nicolelis

A estimativa é do próprio neurocientista da Universidade Duke, em Durham, na Carolina do Norte (EUA), a mais de 5.000 quilômetros em linha reta da capital do Rio Grande do Norte. Depois de virar reportagem na revista científica britânica "Nature" e na Folha de S.Paulo, sua idéia de presentear Natal se repete como manchete dos jornais locais, prenhes daquele misto de incredulidade e assombro que paralisa agraciados com a sorte grande. Já Nicolelis, 42, administrador e líder de um laboratório de pesquisa americano com US$ 2 milhões a US$ 3 milhões de dotação anual, se mostra bem à vontade no papel da mais recente celebridade potiguar.

"Você pegou Natal inteira de surpresa", foi logo dizendo o apresentador Maurício Pandolphi na noite de 23 de junho, no programa ao vivo "Grandes Temas", da TV Universitária da UFRN. "Prefeito, governadora, mídia —todo mundo." Era a véspera de São João, para muitos no Nordeste a noite mais importante do ano, e mesmo assim a entrevista com o pesquisador levou personalidades locais ao estúdio, como o secretário estadual de Indústria, Comércio, Ciência e Tecnologia, Betinho Rosado.

Não fazia ainda duas horas que Nicolelis e o filho Pedro, 15, haviam chegado à cidade, com tempo somente para abandonar as malas ainda trancadas no quarto 344 do Pirâmide Palace, um dos vários hotéis espetados nas rochas entre a cinematográfica via Costeira e o verde do oceano Atlântico. As duas fitinhas do Senhor do Bonfim no pulso esquerdo, uma azul e outra vermelha, traíam a última proveniência do pesquisador paulistano emigrado.

No dia seguinte, o de São João, a agenda preparada pela também neurocientista Bernadete Cordeiro de Sousa, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, seria carregada: reunião com o reitor da UFRN, entrevista para a retransmissora do SBT, visita ao terreno que uma semana depois seria doado para sede do futuro instituto, no município vizinho de Macaíba, e encontro com a governadora Wilma de Faria (PSB).

Raio-X

Nome: Miguel Angelo Laporta Nicolelis
Idade: 42 anos
Família: casado com Laura Oliveira, 44, e pai de Pedro, 15, Rafael, 13, e Daniel, 9
Formação: graduação na Faculdade de Medicina e doutorado no Instituto de Ciências Biomédicas, ambos da USP
Profissão: neurocientista
Livros de cabeceira: "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de Machado de Assis, e "Viva o Povo Brasileiro", de João Ubaldo Ribeiro
Time: Palmeiras


Nicolelis, cujo grupo de pesquisa na Duke espantara o mundo tecnocientífico em 2000 ao fazer o cérebro de um macaco-coruja comandar o movimento de um braço robótico, surpreendeu mais uma vez e disse no ar, no programa "Grandes Temas", que não pretendia mudar-se para as praias ensolaradas de Natal com a família —a mulher, Laura Oliveira, 44, Pedro e os outros dois filhos, Rafael, 13, e Daniel, 9. Quando muito, dedicaria 3 a 4 meses por ano para o novo instituto, sem condições de abrir mão da posição conquistada nos EUA.

Desarmou, com isso, a primeira suspeita que vem à cabeça de todos quantos ouvem sua idéia de criar um centro de excelência na esquina do Nordeste e para lá atrair a nata da neurociência mundial —brasileiros expatriados em primeiro lugar, como Sidarta Ribeiro, seu colega em Durham, e Claudio Mello, da Universidade de Saúde e Ciência do Oregon (EUA).

Por que, então, Natal, se não pelas praias?

Porque é necessário descentralizar a pesquisa de ponta no Brasil, responde Nicolelis. "Precisamos emular [imitar] lugares que deram certo. Os Estados Unidos têm ciência no país todo", recomenda o exilado, que fez toda a sua formação no Brasil e agora se beneficia da generosidade pragmática dos norte-americanos com suas instituições de pesquisa. Começou com o curso de medicina na USP, depois de primário e ginásio —hoje ensino fundamental— no "grupo escolar" (escola estadual) Napoleão de Carvalho Freire, no bairro paulistano de Moema.

O secundário —ensino médio, agora— o levou ao puxado e caro Colégio Bandeirantes, na época o preferido dos aspirantes a uma vaga no concorrido curso de medicina da USP. O doutorado foi no Instituto de Ciência Biomédicas, de novo na USP, com orientação informal de Cesar Timo-Iaria, "o patrono da neurociência no Brasil", nas palavras sempre escolhidas com cuidado por Nicolelis, filho de juiz e escritora.

Suas outras duas razões para criar um centro em Natal: porque existe uma boa infra-estrutura de pesquisa em neurociência na UFRN e porque a região apresenta "grande potencial de impacto social". Além de grupos de pesquisa como o de Bernadete de Sousa, a UFRN abriga um centro de primatologia (estudo de macacos) com um dos principais viveiros do país, no qual são criados 250 saguis (da espécie Callithrix jacchus). O neurocientista nega, porém, que a disponibilidade de saguis tenha sido determinante para eleger Natal: "Mesmo que o centro [de primatologia] não existisse, ainda assim estaríamos aqui".

É na terceira razão apontada que Nicolelis apóia o peso da escolha pela capital potiguar —e não a baiana, por exemplo, sua cidade preferida no Nordeste, que já contaria com razoável atenção para questões sociais. Porque esse paulistano quer fazer de Natal mais que um portal de recepção para neurocientistas brasileiros repatriados e um ponto de referência internacional em pesquisas sobre o cérebro: "Vamos fazer de Natal também um centro exportador de um projeto educacional".

Seu plano é dotar o centro de neurociência de duas instituições conexas de prestação de serviços para a comunidade local: uma escola de primeira linha para crianças pobres e um instituto de saúde mental. Entre as duas, contudo, a prioridade fica com a escola, como fica evidente após alguns minutos de conversa com Nicolelis, no amplo vestíbulo piramidal do hotel à beira-mar. Os minutos se tornam algumas horas que entram sem esforço pela madrugada do pesquisador, palmeirense, que se diz acostumado a sofrer diante de jogos "transmitidos" linha por linha de texto na internet, a trabalhar até altas horas e a dormir pouco.

Divulgação/Universidade Duke
Macaco-coruja durante teste que interpretou sua atividade cerebral e moveu um braço mecânico
De fato, não parece haver horas suficientes numa única noite para Nicolelis extravasar o entusiasmo de sua visão: "A neurociência só encontra rival na genética, para explicar o que nós somos", diz, convicto de que conhecer os meandros do funcionamento do cérebro humano ajudará a refinar os princípios e técnicas pedagógicas. "Queremos levar nossa experiência ao mundo educacional brasileiro, inserir cidadãos na cultura mundial, dar-lhes opções de vida amplas", promete. "Teremos um currículo desenhado para extrair o máximo potencial das crianças, dando exemplos do que se pode atingir quando se tem chance de exprimir todo o potencial."

A proximidade entre ciência, pedagogia e cidadania —ou o que chama de "educação mental"— é a percepção que, segundo Nicolelis, o reúne aos companheiros Ribeiro e Mello nesse projeto. A idéia de lançar um centro de neurociência no Brasil já estaria circulando na comunidade de especialistas há algum tempo, mas a onda de otimismo com a eleição de Lula teria dado o empurrão final. "É a nossa chance de fazer história", diz Nicolelis, que narra com orgulho visível suas peripécias político-estudantis, como ter presenciado das galerias do Congresso Nacional, em 25 de abril de 1984, ao lado de uma sobrinha de Fernando Henrique Cardoso, a derrota da emenda Dante de Oliveira, que instituiria eleições diretas para presidente no Brasil.

Foi dez anos depois desse fracasso que lhe veio a idéia de um instituto internacional de neurociência em Natal, formando um tripé com a Costa Leste dos EUA e com Portugal —onde esse campeão de "networking" afirma já ter granjeado apoios do colega Alexandre Quintanilha, do Instituto de Biologia Molecular e Celular do Porto, e da pianista Maria João Pires, que lá também sustenta um seu projeto socioeducacional. Foi pouco antes de aceitar um convite da Duke para integrar um laboratório novo em folha, quando concluía um produtivo pós-doutorado na Universidade Hahnemann, na Filadélfia (Pensilvânia, EUA), e estava em vias de deixar para trás um cargo de professor na USP ("Paguei a multa rescisória, acho que fui o único").

"Foi assim que publiquei o primeiro trabalho na [revista científica americana] 'Science'. Estava andando pelo corredor do departamento. A gente deixava o rádio tocando. Existe uma adaptação de um pianista para o 'Hino Nacional' brasileiro, com a filarmônica da Filadélfia, muito boa. Começou a tocar, pensei que estava tendo uma alucinação. Aí pensei: puxa, podia estar fazendo isso no Brasil."

"Isso", no caso, é o que em momentos de me- nos modéstia Nicolelis descreve como "revolução conceitual" na neurociência: as tecnologias e modelos que permitiram a seu grupo ser um dos pioneiros na compreensão de como se comportam coordenadamente centenas de células nervosas (neurônios) do córtex cerebral, a "casquinha" do órgão em que se concentra sua atividade cognitiva. Usando microeletrodos para captar sinais elétricos de neurônios individuais e elaborados programas de computador para integrá-los numa paisagem coerente, a equipe de mais de 30 cientistas liderada pelo brasileiro —na qual há cinco conterrâneos e uma salada linguística de franceses, israelenses, taiwaneses e até norte-americanos— já conseguiu decifrar alguns padrões do córtex motor de macacos como o coruja e o reso.

"Antes disso, [a neurociência] via o neurônio isolado, mas o neurônio pode morrer que [mesmo assim, o cérebro] ainda realiza a função", afirma Nicolelis. As técnicas de tomografia para produzir imagens funcionais do cérebro, segundo o pesquisador, "não têm resolução temporal nem espacial"; quer dizer, só informam o que está acontecendo num único instante e com um grupo muito grande de neurônios (milhões de células contidas num milímetro cúbico). Ele começou trabalhando com a sondagem contínua de grupos de oito células, hoje está na faixa de 300 e logo pretende chegar perto de mil. Essa população funciona como uma amostra aleatória dos milhões de neurônios envolvidos no processamento de sinais para comandar o movimento de um braço —no macaco reso, essa área especializada do córtex motor mede uns 80 milímetros quadrados. "Amostramos 300 células e conseguimos informação suficiente para dar movimento a um braço mecânico", conta o cientista. "Essa é a beleza."

O pacote desenvolvido por Nicolelis e sua equipe deve revelar-se ainda mais poderoso. O cientista diz que em breve vai publicar resultados mostrando que seus macacos-ciborgues aprendem a mexer o membro robótico sem mover ao mesmo tempo o próprio braço, um indício de que teriam integrado o artefato mecânico ao seu próprio esquema corporal —essa incorporação ao "self", de resto, é um dos temas centrais do livro que está escrevendo sobre a tese de que o sistema nervoso é plástico (flexível) durante a vida inteira do organismo, e não só durante a sua fase de desenvolvimento, como rezava a neurociência tradicional.

Aficionado por futebol, Nicolelis recorre a seu exemplo predileto da maravilha que é o cérebro humano, ferramenta especializada em adaptar-se aos artefatos criados pela cultura e pela tecnologia, como a bola: o gol de cabeça marcado por Pelé na final da Copa de 70, contra a Itália, gravado para sempre na memória de um menino paulistano de nove anos que se tornaria neurocientista. Seu entusiasmo com esse casamento perfeito entre craque e pelota é tanto que não hesitou em narrá-lo na abertura de um artigo de 2001 para a revista "Nature", depois que o editor lhe pediu um exemplo vívido da integração cerebral de um sem-número de dados e sinais (o texto, "Actions from Thoughts", pode ser baixado da internet na divertida página www.nicolelislab.net). É o seu modo de espantar o "complexo de vira-lata" atribuído por Nélson Rodrigues aos nacionais, e de dizer que cientistas brasileiros bem-sucedidos no exterior não precisam voltar as costas para seu próprio país.

Estética e patriotismo à parte, seu estilo de fazer neurociência atrai a atenção e o favor —nos Estados Unidos— da corporação militar, interessada não só no eventual uso bélico dessas interfaces inteligentes entre homem e máquina como também na melhoria da qualidade de vida de veteranos feridos em combate. Afinal, um tetraplégico que se torne capaz de guiar uma cadeira de rodas motorizada ou pernas e braços mecânicos com o próprio pensamento, quem sabe até mesmo sentindo-os como "seus", estaria provavelmente o mais perto de reaver um "corpo" que a tecnologia pode levá-lo. Motivo bastante para a Darpa (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa, dos EUA) desembolsar a maior parte dos gastos para organizar em Natal, em março de 2004, o simpósio internacional de neurociência com que Nicolelis pretende começar a dar corpo para a idéia que hoje vive mais em seu cérebro do que das esperadas doações de pessoas físicas e instituições, potiguares ou não.

Quem sabe nessa altura Natal já estará mais habituada à prótese caída do céu, como na cena improvável de cinema, e disposta a seguir em frente com ela como se fosse sua. Para Nicolelis, seria mais uma prova palpável da infinita plasticidade da mente humana e, por que não, da cultura brasileira.

Marcelo Leite, 45, é editor de Ciência da Folha de S.Paulo e também se lembra (com saudade) do gol de Pelé em 1970.

     

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