Folha Online sinapse  
29/07/2003 - 03h20

Cinema na prova

LUIZ FRANCISCO
da Agência Folha, em Salvador

O vestibular, tão criticado por sua ineficiência em avaliar o conhecimento, é alvo de mudanças em uma universidade federal. A UFBA (Universidade Federal da Bahia) incluiu no programa de estudo deste ano, pela primeira vez em sua história, uma relação de dez filmes como parte do conteúdo que será testado. Os filmes são sugeridos como "fontes de conhecimento" para a prova da segunda fase (discursiva) de português —que vale para todos os candidatos.

Fotos Divulgação
Cenas de "O Auto da Compadecida" (à esq.) e "Central do Brasil"

Em nota pública, a universidade baiana informa que os candidatos não são obrigados a assistir os filmes, mas faz um alerta: "Eventualmente, eles [os filmes] poderão ser associados a determinadas situações ou a textos literários e não literários apresentados na prova, em especial das obras literárias indicadas para leitura obrigatória, podendo ser significativamente úteis a uma melhor visão e compreensão do mundo e enriquecedores das respostas a serem dadas pelo candidato às questões discursivas".

"Em uma etapa tão concorrida, na qual todos os cursos apresentam três candidatos por vaga, o vestibulando que demonstrar um amplo conhecimento geral certamente tem mais chances de aprovação", comenta Dinéa Maria Sobral Muniz, 56, chefe do Departamento de Educação 2 da Faculdade de Educação da instituição. "Temos de reconhecer que os textos literários são apenas mais um tipo de leitura."

Os filmes indicados para o vestibular da UFBA

  • "O Auto da Compadecida", de Guel Arraes, 1999

  • "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil", de Carla Camurati, 1995

  • "O Carteiro e o Poeta", de Machael Radford, 1994

  • "Central do Brasil", de Walter Salles, 1998

  • "Dodeskaden", de Akira Kurosawa, 2001

  • "Eu, Tu, Eles", de Andrucha Waddington, 2000

  • "A Excêntrica Família de Antonia", de Marleen Gorris, 1996

  • "A Hora da Estrela", de Suzana Amaral, 1985

  • "Inteligência Artificial", de Steven Spielberg, 2001

  • "Memórias Póstumas de Brás Cubas", de André Klotzel, 1999



  • Estudante de um cursinho pré-vestibular de Salvador, Ticiana da Silva Vilar, 18, acha que os filmes vão facilitar a vida dos "preguiçosos" —candidatos que não têm o hábito da leitura. "Confesso que não gosto muito de ler. Então, os filmes serão minha referência na prova discursiva de português", disse a candidata, que sonha em cursar medicina.

    Candidata a uma vaga no curso de medicina, Daniela dos Santos Damaceno, 21, já assistiu a sete dos dez filmes sugeridos pela UFBA. "É claro que os filmes ajudam na interpretação dos textos literários e ampliam o conhecimento dos alunos." Mesmo assim, Daniela considera imprescindível a leitura dos livros.

    Diretor da Faculdade de Educação da UFBA, Nelson de Luca Pretto, 48, vai além em sua avaliação sobre o conhecimento que os filmes podem trazer aos estudantes. "No mundo globalizado, o importante é que o vestibulando seja capaz de fazer a leitura de todos os meios de comunicação, como outdoor, livros, computador, internet, multimídia, história em quadrinhos, novela e rádio. Por mim, todos esses meios deveriam ser objeto de questões das provas." Para Nelson Pretto, o estudante deve sempre ter uma visão crítica. "Qualquer que seja a obra que leia, o mais importante é a sua visão crítica. Ler por ler não interessa", acrescenta o professor.

    Também como primeiro passo para uma mudança no vestibular, Pretto afirma estar satisfeito com a inclusão dos filmes. "No cinema, as pessoas fazem uma análise menos linguística e mais semiótica da obra. O que nós queremos é a busca pelo conhecimento crítico." Pretto acredita ainda que a função dos filmes recomendados não é "ser facilitador da obra literária". "A riqueza da lista apresentada pela universidade é que os filmes não têm uma necessária correspondência com os livros listados como leitura obrigatória", acrescenta.

    Os dois professores acreditam que outras universidades brasileiras vão seguir o exemplo da UFBA e ampliar as sugestões de enriquecimento cultural dos vestibulandos. "Para entrar na faculdade, o fundamental é o aluno ter maturidade suficiente para compreender os fenômenos do mundo. Nesse sentido, os programas dos vestibulares são empobrecedores, pois limitam a capacidade de raciocínio do candidato", diz Nelson Pretto.

    Dinéa Muniz e Nelson Pretto concordam que a UFBA —que, no ano passado, teve cerca de 45 mil candidatos para as 3.846 vagas— demorou para reconhecer que existem alternativas para medir a capacidade crítica e de raciocínio dos candidatos.

    O reitor da UFBA, Naomar Almeida Filho, 51, diz que as mudanças na forma do vestibular da universidade serão mais radicais nos próximos anos. "Nós dependemos apenas da aprovação do Ministério da Educação, mas estamos dispostos a fazer uma verdadeira revolução no sistema de ingresso na universidade."

    Segundo o reitor, a UFBA também pretende incluir referências a peças de teatro, videogame e dança nos próximos vestibulares. Almeida Filho acredita que o sistema atual é excludente "para todos os alunos que não têm a cultura do cursinho pré-vestibular". Segundo ele, o atual método de ingresso na universidade contribui para "selecionar negativamente" os estudantes. "Quem não segue uma norma padrão corre o sério risco de fracassar nas provas. Para mim, esse método está ultrapassado."

         

    Copyright Folha de S. Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).