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23/07/2002 - 03h17

Todos os ócios

OSWALDO GIACOIA JUNIOR
especial para a Folha de S.Paulo

É uma literatura, a que trata o ócio, para ser lida e produzida de pernas para o alto e assim, nessa posição, simbólica e coerentemente, o faço: escrevo no embalo de uma rede, numa paradisíaca praia de Jericoacoara (Ceará). Não me ocorre, no momento, melhor exemplo de ócio produtivo, ou seja, do fim da oposição entre trabalho e lazer. Nada apenas pessoal, porém. O fato é que na sociedade contemporânea se tornou possível deixar o canto épico em louvor do trabalho para entoar a elegia do ócio, este sim reconhecido como o tempo verdadeiramente dignificante. O assunto é caro a Domenico de Masi, sociólogo italiano, autor de "O Ócio Criativo" e "A Economia do Ócio".

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O trabalho penoso e estafante de que as máquinas há muito liberaram o trabalhador não é mais sinônimo de virtude, mas de degradação servil, até mesmo de escravidão física e mental.

É por isso que, nesse novo horizonte de sentido aberto para a aventura humana na história, já não soa mais como uma dissonância cínica e provocativa a apologia do ócio, que desde sempre acompanhou à surdina o ritmo dominante no processo civilizatório ocidental: da magna Grécia à Roma helenística de Cícero e Sêneca, do Renascimento à modernidade e, quanto a esta última, curiosamente em ambos os extremos do espectro ideológico.

Daí a extrema oportunidade e a relevância cultural do fecundo cruzamento de lançamentos editoriais a respeito do tema, de Sêneca a De Masi.

Embalado nesta rede, em que leio, posso ver antecipada em Sêneca a prevenção clarividente contra o esgotamento a que conduz o excesso de atividade inútil, atualmente transformada no flagelo dos "workaholics". Em "Sobre a Tranquilidade da Alma e Sobre o Ócio", advertindo o amigo e discípulo Sereno contra aquela "preguiça inquieta", essa correria desvairada a que se entrega a maioria dos homens, Sêneca os compara a formigas inutilmente laboriosas, trepando açodadamente pelas árvores até o mais alto topo, para de lá descerem vazias à terra, reiniciando sem cessar o mesmo movimento vão. Essa tola agitação não conduz senão ao esgotamento das forças físicas e à frustração mental.

Para Sêneca, é necessário que todo trabalho tenha por destino "um fim claramente definido". "Não é a atividade que move os inquietos, mas, sim, como aos insanos, agitam-nos as falsas imagens das coisas: pois nem sequer esses, os insanos, movem-se sem alguma esperança; atrai-os a aparência de alguma coisa cuja falsidade eles, em sua demência, não distinguem. Dá-se o mesmo a cada um desses que saem para aumentar a turba, motivos vãos e leves os conduzem pela cidade, embora nada tenham em que se ocupar."

Ao prudente conselho do filósofo estóico, que recomenda evitar a falsa operosidade e a fútil agitação, podemos acrescentar, com as leituras agora tornadas acessíveis ao público brasileiro, a arrebatadora condenação do "furor laborandi" escrita pelo insuspeito Paul Lafargue genro de Karl Marx, que, em plena aurora do frenesi capitalista no século 19, denunciava a ideologia penitencial do trabalho como responsável pela infelicidade tanto da classe operária quanto, por extensão, da própria burguesia européia.

"A classe operária, com sua boa-fé simplista, deixou-se doutrinar e, com seu ímpeto natural, atirou-se às cegas no trabalho e na abstinência. Foi por isso que a classe capitalista se viu condenada à preguiça e ao prazer forçados, à improdutividade e ao consumo excessivo. Mas o excesso de trabalho do operário, que fere sua carne e estraçalha seus nervos, também traz muitas dores para o burguês", afirma em seu livro "Direito à Preguiça".

Para Lafargue, a mecanização das linhas de montagem revolucionara de tal maneira os processos produtivos e incrementara a tal ponto a produtividade do trabalho que tornava de novo possível o ócio redentor da humanidade. "O preconceito da escravidão dominava o espírito de Pitágoras e Aristóteles, escreveu-se com desdém. No entanto Aristóteles previa que, 'se cada ferramenta pudesse trabalhar sozinha, assim como as obras de Dédalo moviam-se por conta própria, ou como os trípodes de Vulcano executavam seu trabalho sagrado; se, por exemplo, as navetas tecessem por conta própria, então os contramestres não precisariam de ajudantes, e o senhor não precisaria de escravos'."

"O sonho de Aristóteles é nossa realidade. Nossas máquinas a vapor, com mecanismos de aço incansáveis, maravilhosamente fecundas, inesgotáveis, realizam por si mesmas seu trabalho sagrado. No entanto as mentes dos grandes filósofos do capitalismo continuam dominadas pelo preconceito do trabalho assalariado, a pior das servidões. Ainda não entendem que a máquina é a redentora da humanidade, o Deus que resgatará o homem das sórdidas artes e do trabalho assalariado, o Deus que lhe trará o lazer e a liberdade", escreveu.

Trata-se, podemos perceber, de uma retomada do diagnóstico de auto-rebaixamento de diminuição de valor da humanidade, em seu conjunto, e não apenas do operariado escravizado, que em "Humano, Demasiado Humano", publicado em 1878, Friedrich Nietzsche estabelecera como consequência da barbárie civilizada em que se transformara a moderna hiperatividade compulsória: "A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco irracional. Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de sua atividade incessante; ela é irracional. Os homens ativos rolam como pedra, conforme a estupidez da mecânica. Todos os homens se dividem, em todos os tempos e também hoje, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito".

Nietzsche e Lafargue, embora antípodas em quase todas as outras posições essenciais, denunciavam ambos como patológica a ideologia do valor trabalho, vendo nela uma tentativa bem-sucedida de escravização autoconsentida do proletariado. Nesse sentido, Lafargue observa que, na Renascença, quando os produtores só trabalhavam cinco dias a cada sete, os homens tinham tempo para aproveitar "as alegrias da terra, para rir e fazer amor, para os folguedos, as danças e os banquetes".

"Rabelais, Quevedo, Cervantes, assim como os autores desconhecidos dos romances picarescos, nos deixam com água na boca com suas descrições dessas festas monumentais, que duravam várias semanas, entre períodos de batalhas e devastações, nos quais todos se divertiam e onde tudo era permitido. Jordaens e a escola flamenga descreveram essas festas em suas alegres telas. Sublimes estômagos gargantuescos, que fim tiveram? Sublimes cérebros que envolviam todo o pensamento humano, que fim tiveram? Nós fomos diminuídos e nos degeneramos. A vaca com raiva, a batata, o vinho adulterado e o 'schnaps' prussiano, sabiamente combinados com trabalho forçado, debilitaram nossos corpos e nossas mentes", afirma Lafargue.

Já na primeira metade do século 20, um dos maiores filósofos contemporâneos, o conservador inglês Bertrand Russell (1872-1970), fazia coro àqueles dissidentes do credo ortodoxo acerca da dignidade do trabalho e colocava sob suspeita a tese de acordo com a qual o trabalho dignifica o homem e constitui o objetivo maior da vida. Em seu "O Elogio ao Ócio", lançado neste mês em nova tradução pela editora Sextante, o filósofo reúne uma série de ensaios relacionados ao ócio produtivo, em que reafirma sua profissão de fé nas virtualidades prometéicas e redentoras da técnica moderna.

Também de acordo com ele, nas novas condições disponibilizadas pela tecnologia e pela planificação social, uma jornada de quatro horas de trabalho diário então uma ousadia tornaria possível, sem prejuízo econômico global, que o trabalhador contemporâneo readquirisse aquela felicidade proporcionada pelo lazer racionalmente orientado.

Para Russell, "a técnica moderna tornou possível a drástica redução da quantidade de trabalho necessária para garantir a todos a satisfação de suas necessidades básicas. Isso ficou claro durante a Primeira Guerra Mundial". "Todos os membros das Forças Armadas, todos, homens e mulheres, engajados na produção de munições, na espionagem, na propaganda de guerra e nas funções de governo ligadas à guerra foram sacados de suas ocupações produtivas. Apesar disso, o nível geral de bem-estar físico entre os assalariados não-qualificados do lado dos aliados era mais alto do que antes e até depois da guerra. A guerra demonstrou claramente que, por meio da organização científica da produção, uma pequena parte da capacidade de trabalho do mundo moderno é suficiente para que a população desfrute de um nível de conforto satisfatório."

Como Sêneca, Russell considerava que o tempo ocioso não deveria ser confundido com o pior sentido de preguiça e inação, mas concebido como um tempo de cultivo espiritual, de preparação para o conhecimento, as artes e a política, para o que se fazia mister uma adequada instrução. "O uso adequado do lazer é produto da civilização e da educação. Um homem que toda a sua vida trabalhou irá ficar entediado se ficar ocioso de repente. Mas, sem uma quantidade adequada de lazer, a pessoa fica privada de muitas coisas boas", afirmava Russell.

É para tanto que a sociedade contemporânea deveria se preparar, pois atualmente, como já questionava Russell, nada mais justifica que "a maioria da população deva sofrer tal privação, e só um ascetismo tolo faz com que continuemos a insistir no excesso de trabalho, quando não há necessidade. Mas o que acontecerá quando chegarmos à situação em que o conforto seja acessível a todos sem a necessidade de tantas horas de trabalho?".

De todo esse prodigioso cruzamento de referências teóricas e práticas se depreende a importância e a necessidade do resgate histórico da experiência ancestral do ócio produtivo em nossos tempos pós-industriais. Entretanto é necessário também apurar os ouvidos para aquele conselho prudencial de "cuidado de si", sabiamente ministrado por Sêneca, para evitar que o tempo livre seja de novo sequestrado pelo sucedâneo moderno da barbárie civilizada, ou seja, pela fúria planificadora da indústria do consumo e do lazer.

Muitos contemporâneos e sucessores de Lafargue e Nietzsche se deixaram extraviar pela profecia do apocalipse tecnológico, iludindo-se com as promessas de bem-estar trazido pela substituição do trabalho humano pelas máquinas. Eles pensavam que o consoou-mo para (pelo menos potencialmente) todos implicaria a concretização do antigo ideal de felicidade na Terra. Hoje, sabemos que o sonho se transformou em pesadelo e, como dizia o filósofo alemão Hans Jonas, o apocalipse tecnológico está próximo de se converter em catástrofe gerada pelo consumo irracional.

Deveríamos nos esforçar para impedir que o redivivo ócio produtivo que nos libera para as florações do espírito se torne presa da compulsiva atividade consumista da indústria cultural. Para cuidar dessa dimensão ociosa do moderno "cuidado de si", poderíamos nos valer da interlocução privilegiada de alguns conhecidos estraga-prazeres, como o próprio Hans Jonas, Heidegger e Adorno, temperados com uma boa rede de balanço, praia, água de coco, recolhimento meditativo e silêncio.

Oswaldo Giacoia Junior, 48, é professor livre-docente de filosofia na Unicamp e autor de "Os Labirintos da Alma" (Unicamp), "Nietzsche" (Publifolha) e "Nietzsche como Psicólogo" (Unisinos). Apaixonado por Kafka e Dostoiévski, considera indissociável o vínculo entre filosofia e literatura.

E-mail - giacoia@tsp.com.br

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