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26/08/2003 - 03h00

Inteligência à prova

REINALDO JOSÉ LOPES
free-lance para a Folha de S.Paulo

Quem nunca precisou se debruçar sobre um teste de QI (quociente de inteligência) vai achar a informação esdrúxula, mas o resultado desse tipo de prova pode salvar sua vida —literalmente, se você for um criminoso norte-americano. Desde junho do ano passado, uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos proíbe a execução dos condenados à morte que fizerem 70 ou menos pontos no teste, valor considerado diagnóstico de retardo mental.

Cris Bierrenbach/Folha Imagem
Celso Goyos, que realiza testes de QI com crianças
O que os magistrados de Washington não sabem, porém, é que o desempenho médio nos testes de QI tem aumentado até 20 pontos por geração no mundo todo, de forma que a pessoa não muito esperta, mas normal, de ontem poderia facilmente ser considerada o deficiente mental de amanhã. Esse tipo de paradoxo está levando psicólogos, educadores e cientistas sociais a questionar cada vez mais o que o tal quociente de inteligência é realmente capaz de medir e sua relação com o conceito (cada vez mais fugidio) de inteligência.

O próprio número que costuma ser associado ao desempenho num teste de QI é mais ambíguo do que parece. Surgiram diversos tipos de teste desde que o psicólogo francês Alfred Binet (1857-1911) idealizou o primeiro deles, em 1905. O objetivo inicial era descobrir quais crianças tinham capacidades mentais abaixo do normal e precisariam de educação especial. Com o passar do tempo, foi definida uma escala comparativa de desempenho, que sempre leva em conta a faixa etária de quem faz os testes. O desempenho da média de um grupo da mesma idade é sempre 100, enquanto um desempenho igual ou menor a 70 pontos indicaria deficiência mental.

Muitos psicólogos postulam que, a partir dos testes, é possível chegar ao chamado "fator g", uma medida de inteligência pura que não dependeria do grau de treinamento ou da escolaridade da pessoa testada, mas representaria a faculdade mental responsável pela maior parte de um bom desempenho no teste ou em outras atividades.

O grande problema dessa estratégia é que, conforme uma série de estudos vêm demonstrando desde os anos 80, os desempenhos têm melhorado em cerca de 15 a 20 pontos de geração em geração e na maioria dos países do mundo.

No centro da controvérsia que essa descoberta intrigante tem alimentado está o americano naturalizado neozelandês James Flynn, 69, do Departamento de Estudos Políticos da Universidade de Otago. Ele é o descobridor do bizarro aumento nas pontuações de QI, batizado de "efeito Flynn". Sob todos os aspectos, Flynn é um estranho no ninho: "Acredito que muitos problemas requerem uma combinação de filosofia e ciência social, e isso é especialmente verdadeiro na relação entre QI e raça", afirma.

Diversos estudos nos EUA mostravam uma diferença média de 15 pontos entre o QI de brancos e o de negros americanos, e isso motivou Flynn a tentar achar buracos nesses dados, que pareciam condenar os cidadãos de origem africana a um status geneticamente subalterno.

Flynn não achou o que procurava, mas acabou tropeçando num dado ainda mais precioso: pessoas que passavam raspando na média (100 pontos) nos anos 70 faziam 108 pontos nos testes mais antigos. "Claramente, os americanos tinham ganhado oito pontos de QI num período de 25 anos", afirma.

O pesquisador neozelandês foi em busca dos dados em diversos países e revelou uma surpresa ainda maior: um aumento por volta de 20 pontos em cada geração de 30 anos em 20 países (hoje, Flynn tem dados de 23). A lista inclui Holanda, Bélgica, França, Noruega, Argentina, Israel, Quênia, Brasil, China e todos os países de língua inglesa.

Para Flynn, as implicações da maleabilidade do QI levam a repensar o tal "fator g" e o próprio conceito de inteligência. É isso que o uniu ao economista americano William Dickens, da Brookings Institution, em Washington. Dickens contou à Folha que se envolveu no debate sobre os testes de QI durante a controvérsia que cercou o lançamento do livro "The Bell Curve" (A Curva do Sino), de Richard Herrnstein e Charles Murray, em 1994.

Apresentando as estatísticas que mostravam o atraso dos negros nos testes de QI, o livro classificava de inútil toda a política de cotas educacionais e ação afirmativa para afro-americanos. "Escrevi um artigo refutando o livro, e meu editor pediu comentários de outros pesquisadores para publicá-los junto com o meu texto. Sugeri o nome de Flynn, e começamos a nos corresponder", afirma Dickens.

O modelo que a dupla está desenvolvendo para explicar os ganhos maciços de QI leva em conta principalmente as mudanças sociais desde o começo do século 20. Flynn sugere que o aumento da escolaridade nas nações industrializadas teve algo a ver com isso até os anos 50, mas que o efeito desse processo deve ter cessado, porque os testes que medem o conteúdo aprendido na escola tiveram um aumento desprezível na última geração. Por outro lado, o fator por trás do desempenho batendo no teto pode estar relacionado ao aumento de ocupações que exigem mais iniciativa, a famílias menores que dão mais atenção e incentivo aos questionamentos infantis e ao aumento do lazer.

"As várias avaliações são usadas dependendo do que você quer medir. Nem todos os pesquisadores acham o teste útil", diz Celso Goyos, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (SP), que trabalha com crianças que têm dificuldades de aprendizado.

A influência do ambiente nos resultados é uma tese com a qual a maioria dos especialistas concorda. De acordo com Irai Cristina Boccato Alves, 53, do Instituto de Psicologia da USP, "é preciso levar em conta a vida da pessoa e a sua condição física e social", pondera a psicóloga. "A criança, por exemplo, tem de ser avisada previamente de que vai fazer o teste, porque isso influencia no tempo de reação dela às questões", diz Olga Rolim, do Departamento de Psicologia da Unesp de Bauru (SP).

Dickens diz não estar convencido de que não houve algum aumento real nos níveis de inteligência: "Temos visto um progresso enorme em inúmeros campos num período muito curto. Mas, se nosso modelo está certo, o conceito do 'fator g' terá de ser profundamente questionado. Nosso modelo mostra que os resultados podem ter mais a ver com a exigência das habilidades por parte do ambiente do que com qualquer capacidade cognitiva inata", diz o economista.

"Eu acredito que há ganhos cognitivos reais", pondera Flynn. "Mas eles são surpreendentemente compartimentalizados! Não dá para simplesmente descrevê-los como ganhos de inteligência."

O neurocirurgião do Hospital das Clínicas da USP Joel Augusto Ribeiro Teixeira, 35, presidente da Mensa Brasil (sociedade internacional que reúne pessoas de QI alto), concorda que a escolaridade e outros fatores externos podem tornar o índice maleável, mas defende a validade dos testes. "É o único instrumento de medição que nós temos. Todo o resto é subjetivo", afirma.

Para o neurocirurgião, há uma tendência da sociedade de encarar a inteligência como tabu. "A sociedade, inclusive os psicólogos, não quer comparar as pessoas. No fundo, todos querem ser considerados inteligentes", diz.

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