Folha Online sinapse  
30/09/2003 - 02h50

Faca de dois gumes

ROMY AIKAWA
free-lance para a Folha de S.Paulo

Boa formação acadêmica, fluência em mais de um idioma estrangeiro, experiência internacional na profissão —nada mais parece garantir uma boa colocação no mercado de trabalho.

Fotos Cris Bierrenbach/Folha Imagem
O engenheiro Christian Bittencourt
A situação vem provocando reações inesperadas de pessoas com currículos invejáveis, como Christian Bittencourt, 37. Superqualificado, o engenheiro decidiu montar uma versão "um pouco mais branda" de seu currículo, sem destaque para os cargos que ocupou. "É uma maneira de demonstrar que estou aberto a diferentes propostas", explica.

Bittencourt retornou ao Brasil há pouco mais de um ano, após um período de crescimento profissional intenso no exterior. "Voltei com a intenção de criar meus filhos perto da família. Deixei para trás o cargo de diretor em uma empresa da área de tecnologia em comunicação em Londres", diz.

Formado em engenharia elétrica pelo Instituto Mauá de Tecnologia, ele trouxe na bagagem um estágio em universidade na Alemanha, mestrado na Universidade de Londres, experiências profissionais no Japão, na Inglaterra e nos Estados Unidos (com passagens pela Espanha e pela Itália) e domínio dos idiomas alemão, inglês e espanhol —além de falar italiano e ler kanji (um dos três alfabetos básicos da escrita japonesa).

Após 16 meses, Christian ainda não encontrou um emprego. "Teoricamente, não deveria, mas percebi que minha qualificação estava interferindo nesse processo", diz. Para ele, o receio das empresas é o de contratar pessoas que possam ficar desmotivadas por não ocupar um cargo compatível com suas qualificações, ou por não ter um salário condizente, e larguem o emprego na primeira oportunidade.

"Se, nos anos 80, o desemprego afetou com maior intensidade a mão-de-obra menos qualificada, nos anos 90 ele também passou a atingir os profissionais das classes média e alta, com melhor qualificação", diz o professor Waldir José de Quadros, membro do Cesit (Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho) e coordenador da pós-graduação do Instituto de Economia da Unicamp.

O especialista em comércio exterior Sidney de Oliveira, 50, tem vivido a mesma sina: superqualificação. No começo deste ano, quando o Bank of America —onde trabalhava havia 24 anos— deixou o país, Oliveira perdeu o posto de consultor de comércio exterior.

"Eu tinha uma posição hierárquica alta, com remuneração alta. Se isso aparece, as empresas o descartam porque concluem que você quer algo do mesmo nível, quando essa nem sempre é a realidade", diz. Oliveira tem MBA na área de finanças, especializações diversas e fala inglês e espanhol.

Depois de receber, três vezes seguidas, a resposta "overqualified", resolveu "enxugar" seu currículo, não detalhar experiências ou só destacar as específicas para a área que está pleiteando. Com o novo currículo, já conseguiu duas entrevistas.

De acordo com Antônio Corrêa de Lacerda, professor da Faculdade de Economia e Administração da PUC-SP e presidente da Sobeet (Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização da Economia), o quadro de desemprego que hoje atinge profissionais do nível de Bittencourt e Oliveira se explica, em parte, pelo longo período de retração da economia. "Paralelamente, a globalização elevou o nível de exigência do mercado." O resultado foi o aumento da procura por qualificação. Aplicada a lei da oferta e da demanda, não poderia dar em outra coisa: esses profissionais agora se deparam com cargos inferiores hierarquicamente e salários reduzidos.

"Com o mercado ultra-seletivo, está sobrando gente qualificada", reforça Waldir Quadros.

Qualificação que, para os consultores de RH em geral, não deve jamais ser omitida nos currículos. A consultora Sônia Gonzalez, da DM Recursos Humanos, não acredita que um currículo modesto seja uma boa solução. "O melhor é ser transparente, mostrar que está interessado, passando segurança e comprometimento. Mesmo porque um bom recrutador checará tudo", afirma.

Se o objetivo é ter a chance de ser entrevistado, Rosana Barbosa, diretora da M&A Lee Hecht Harrison - Global Partners, especializada em serviços de carreira, admite a possibilidade de amenizar informações, como dizer que atuou em determinada área e não que foi diretor dela. Mas concorda que o caminho é outro.

"Acho que é preciso mudar o foco: em vez de buscar um emprego, o profissional deve vender seu talento para o público certo. Há empresas que valorizam a idade, outras, a formação, e outras, a experiência", diz.

"Focar", segundo Charles Zyngier, 31, é fundamental, "assim como fazer muito 'network', conversar com o maior número de pessoas possível". O conselho é de quem conquistou uma recolocação apenas quatro meses após o retorno de uma experiência de cinco anos nos Estados Unidos, em abril deste ano, sem nada em vista.

Formado em engenharia mecânica pela USP, com MBA na Universidade de Chicago e fluência em inglês, espanhol, italiano e hebraico, Zyngier nunca havia enfrentado o desemprego. De volta, viu que o momento não estava nada favorável: "Nunca vi tanta gente qualificada atrás de emprego. E, quando esperar a melhor oportunidade vai ficando caro, você começa a pensar em outras saídas". Até ser contratado, sua escolha foi prestar serviços de consultoria.

A publicitária Lilian Marani
Rosana ressalta que, com equipes enxutas, há entre as empresas a tendência para buscar prestadores de serviços. Eline Kullock, presidente do Grupo Foco, voltado para a recolocação de profissionais do nível executivo, acrescenta: "Alternativas paralelas, como oferecer consultorias, lecionar e fazer trabalho social sempre agregam valor. Se a empresa não pode pagar um salário compatível com a capacidade do profissional, talvez possa pagar uma consultoria". Para Eline, montar um currículo especial para cada empresa já mostra empenho.

"Tenho feito trabalhos de consultoria, mas não imaginava nada disso quando pensei em voltar. Não me sinto motivado a continuar", confessa Christian Bittencourt.

A analista de sistemas Margarete Aparecida, 37, também não se identifica com a consultoria esporádica: "Prefiro encontrar uma colocação em uma empresa". Há mais de um ano desempregada, ela traz no currículo um MBA, inglês fluente, cursos de especialização, oito anos de experiência em uma empresa nacional de tecnologia e mais três em uma multinacional da área de telecomunicação.

Para conquistar seu espaço, ela própria faz contatos e vem conseguindo entrevistas. Nesse caminho, Margarete revela ter-se deparado com uma certa dificuldade dos departamentos de recursos humanos em avaliar a capacidade de candidatos. "Deixei de concorrer a uma vaga que exigia conhecer um determinado equipamento porque o recrutador não entendeu que ele era semelhante àquele com o qual eu tinha trabalhado", lamenta.

Por causa das experiências, Margarete também adota eventualmente uma espécie de "currículo dois". "Conforme o caso, apresento uma carta com minhas qualificações, algumas experiências, o nome das empresas onde trabalhei e só. Na entrevista, explico mais detalhadamente cada item."

A publicitária Lilian Marani, 37, esbarrou em outra dificuldade: ser uma profissional de salário alto registrado na carteira de trabalho. "As empresas não querem baixar a remuneração na carteira. Já houve até quem me aconselhasse a tirar uma segunda via", afirma.

     

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