Folha Online sinapse  
30/09/2003 - 02h54

Perfil: O radical de Harvard

JAMES TRAUB
da "The New York Times Magazine"

Não é tarefa fácil nem invejável assumir a direção de uma instituição que se vê como inigualável. Menos ainda quando, como é o caso da Universidade Harvard, muitas pessoas compartilham desse ponto de vista, entre elas algumas das mais poderosas do mundo.

LM Otero/Associated Press

Summers, então secretário do Tesouro dos EUA, fala em encontro do Banco Interamericano de Desenvolvimento
Neil Rudenstine foi reitor de Harvard entre 1991 e 2001 e, depois de alguns anos no cargo, sofreu uma espécie de colapso nervoso. Ele se recuperou, e o êxito do restante do tempo em que ocupou a posição foi garantido por um misto de cortesia com uma humildade quase hiperbólica diante de seu próprio corpo docente.

Quando Rudenstine anunciou sua intenção de se aposentar, o conselho de direção da universidade, a Harvard Corporation, concluiu que a instituição se tornara complacente —se bem que, é claro, permanecesse inigualável.

Assim, em março de 2001, o conselho substituiu Rudenstine por Lawrence H. Summers, 48, secretário do Tesouro na administração Clinton e o homem mais inclinado a achatar a vaidade de um colega do que a incentivá-la.

Raio-X

Nome: Lawrence H. Summers, 48
Nascimento: 30/11/1954
Família: casado com Victoria Summers e pai de duas gêmeas, Pam e Ruth, 13, e de Harry, 10
Formação: bacharelado em ciências pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology) e Ph.D em economia por Harvard
Profissão: reitor da Universidade Harvard
Livros publicados: "Understanding Unemployment"(1990) e "Reform in Eastern Europe" (1991, com outros autores), entre outros


Summers diz que sempre acreditou que a melhor maneira de demonstrar o respeito que você sente pelo próximo é argumentar com ele, geralmente até um ou outro ser obrigado a reconhecer o erro.

Assim, ao longo dos últimos dois anos, ele vem explicando com paciência a seus colegas das escolas profissionais e do corpo docente de artes e ciências, a estudantes, ex-alunos, doadores e, por meio da mídia impressa, à elite do país —com notas de rodapé, avisos e uma ousadia intelectual que poucos podem negar (ou, quem sabe, resistir)—, exatamente por que é chegada a hora de ser operada uma transformação em Harvard.

Summers quer que Harvard se enxergue como uma entidade soberana única, em lugar de um arquipélago de instituições frouxamente interligadas. Ele quer mudar o currículo dos estudantes de graduação para que eles focalizem menos as "maneiras de conhecer" ("aprender a aprender") e mais os conhecimentos propriamente ditos. Quer elevar os tipos de conhecimento quantitativos para algo que se aproxime de uma situação de paridade com os tipos de conhecimento tradicionalmente humanistas.

Ele quer fazer com que a universidade se engaje mais diretamente com problemas de educação e saúde pública e quer que as profissões que lidam com esses problemas alcancem o mesmo status que carreiras como direito, administração e medicina, tradicionalmente "mais nobres". E quer afirmar certas verdades tradicionais —ou, melhor dizendo, abrir um espaço intelectual em que tais verdades possam pelo menos ser postuladas.

Mesmo que Summers fosse uma figura calculista e cheia de subterfúgios, com uma agenda oculta de mudanças drásticas que tencionasse implementar, ele teria uma tarefa difícil pela frente. Mas não: é uma figura direta, sem rodeios e dominadora, com uma agenda abertamente declarada de mudanças drásticas que pretende implementar. Logo, não chega a surpreender que Larry Summers não seja uma figura tão benquista quanto seu cortês e simpático predecessor.

Um dos mais velhos amigos de Summers no corpo docente disse: "Conheço um monte de pessoas em outras partes do campus que simplesmente o odeiam. A intensidade da antipatia que nutrem por ele é realmente chocante".

Summers não foi contratado com a incumbência direta de tentar mudar a instituição ou sua cultura. Mas, quando Rudenstine anunciou sua saída, os sete integrantes da Harvard Corporation, que controlam o processo sucessório, decidiram que o próximo reitor teria comando maior sobre a universidade.

Ao longo dos anos, Harvard adquiriu 105 hectares de terreno na outra margem do rio Charles, na cidade de Allston —uma superfície tão grande quanto a do campus já existente. O ex-reitor teve a oportunidade espantosa de dobrar o tamanho de Harvard e, possivelmente, redesenhar o mapa de sua vida intelectual numa nova era de atividade interdisciplinar. E, graças à habilidade de Rudenstine para levantar fundos, Harvard dispunha de uma dotação de US$ 19 bilhões, com a qual podia ajudar a financiar a mudança.

Infelizmente, nenhum dos principais candidatos à mudança de sede física —a escola de direito, a parte científica— estavam ansiosos por deixar os limites do Harvard Yard. Rundenstine deixara claro que não faria ninguém mudar contra sua vontade. Era evidente que as coisas não podiam continuar daquela maneira. Assim, como disse Ronald Daniel, membro influente da Harvard Corporation, "concordamos que precisávamos de alguém mais agressivo, mais ousado, mais contundente".

Em julho de 2001, quatro meses depois de anunciada sua indicação e dois meses antes de assumir o cargo, Summers concordou, com alguma relutância, em reunir-se com sete ou oito dos principais acadêmicos negros de Harvard. Sob a égide cuidadosa e generosa de Rudenstine, Harvard tinha reunido, de longe, o mais respeitado departamento de estudos afro-americanos do país.

Os acadêmicos negros temiam que Summers, conhecido por ser pragmático e realista, seria muito menos atento a eles do que Rudenstine tinha sido. No encontro, o professor da escola de direito Charles Ogletree pressionou Summers para que explicasse o que pensava da ação afirmativa.

De acordo com um participante no encontro, Summers respondeu: "O júri está deliberando. Quero decidir por mim mesmo".

O efeito disso foi que suas relações com a comunidade negra de Harvard começaram de maneira nada auspiciosa. E elas acabariam por piorar bastante durante um imbróglio de Summers com o filósofo Cornel West, que acabou deixando a universidade e indo para Princeton.

Summers agiu de maneira igualmente rude com a também delicada questão da tradicional divisão de poderes da universidade. Harvard é uma organização esdrúxula, que se assemelha mais às Nações Unidas, com suas organizações semi-autônomas, do que a uma universidade clássica. Cada uma das escolas de graduação levanta seus próprios fundos e determina seu próprio orçamento, e o corpo docente de artes e ciências faz o mesmo.

O reitor e seu aparato burocrático, que ocupam um prédio próprio, são conhecidos coletivamente como "o centro". Summers deixou claro desde o começo que o equilíbrio de poder em Harvard iria se deslocar para o centro.

Os ataques terroristas de 11 de Setembro aconteceram imediatamente após a posse de Summers e coloriram seu reitorado de maneiras que dificilmente poderiam ter sido previstas. Enquanto boa parte do mundo universitário aderiu à visão de que os Estados Unidos deviam ter sido pelo menos parcialmente responsáveis pelos ataques, Summers diz que se sentiu na obrigação moral de defender os valores patrióticos. Além disso, tentou elevar, no campus, o status do ROTC (iniciais de "Reserve Officer Training Corps", um grupo de estudantes em algumas faculdades e universidades que recebem treinamento com vistas a se tornarem oficiais das Forças Armadas).

Em setembro de 2002, ele lançou mais um desafio ideológico ao afirmar, em discurso que virou notícia de primeira página em todo o país, que "pessoas sérias estão defendendo e empreendendo ações cujos efeitos são anti-semitas, mesmo que sua intenção não o seja". E ele não se furtou de observar que, entre essas pessoas, figuravam acadêmicos de Harvard e outras organizações que tinham assinado uma petição pedindo que a universidade tirasse de seu portfólio empresas que tinham negócios com Israel.

Entre o patriotismo, o ROTC, o anti-semitismo e muitos comentários intransigentes sobre o aumento artificial de notas, Summers em pouco tempo ganhou a reputação de porta-voz dos valores de centro, em oposição ao esquerdismo consensual do campus de elite.

O próprio Summers se irrita com a sugestão de que esteja querendo contradizer a tendência predominante na instituição que lidera ou, de alguma maneira, impor um controle sobre ela. Ele rejeita a alcunha de "conservador cultural", não apenas porque ela lhe traria muitos problemas mas também, afirmou, porque aqueles que marcham sob essa bandeira tendem a "ter opiniões sobre o único caminho correto a seguir, que costuma ser um caminho branco, europeu e masculino".

Summers não é realmente esse tipo de ideólogo. Antes, o que acontece é que ele é uma figura que não se envergonha de se dizer de centro em meio a uma cultura altamente progressista.

A razão fundamental pela qual Summers quer modificar o currículo universitário é que, como ele próprio explica, a natureza do conhecimento mudou radicalmente.

Summers frequentemente afirma que um dos dois fenômenos mais importantes do último quarto de século é a revolução nas ciências biológicas. No entanto, como ele também costuma dizer com frequência, embora seja socialmente inaceitável numa universidade de elite admitir que você não leu uma peça de Shakespeare, nenhum estigma acompanha a declaração de que você não conhece a diferença entre um gene e um cromossomo ou o significado do crescimento exponencial. Summers compara essa ignorância ao provincianismo de alguém que nunca viajou para fora de seu país.

Ele quer que cada estudante viva na ciência por algum tempo e não se limite a fazer "turismo" em um curso que vise ajudar os alunos a "pensar como biólogos". Summers não se opõe categoricamente à abordagem das "maneiras de conhecer". "O que é difícil", diz, "é traçar uma linha divisória entre aprender muita ciência em uma área e ter uma visão mais ampla, mas menos profunda e menos próxima do empreendimento profissional genuíno".

É bem possível que, assim como um reitor anterior de Harvard, Charles W. Eliot (1834-1926), acabou por ser visto como o homem que levou toda a gama do conhecimento moderno para dentro da universidade tradicional, Summers conquiste a imagem do homem que levou as universidades a se aproximarem decisivamente do conhecimento cada vez mais analítico, movido pelos dados.

De certa maneira, Summers quer deslocar Harvard ao mesmo tempo para a vanguarda e para a retaguarda. Ele quer que a universidade esteja na vanguarda das pesquisas mais avançadas; tem muito orgulho de um instituto de genômica que Harvard formou em colaboração com o MIT, entidade essa que vai custar US$ 300 milhões ao longo de dez anos. Ao mesmo tempo, é um tradicionalista intelectual. Ele gostaria de trazer de volta o velho curso de panorama da história da arte, embora, é claro, sob uma forma menos eurocêntrica.

"É mais importante os estudantes terem conhecimentos básicos de literatura do que conhecerem as tendências atuais em termos de teoria literária." Depois de tudo considerado, disse ele, "eu gostaria que déssemos mais ênfase ao conhecimento".

No último século e meio, o tempo médio no cargo dos reitores de Harvard tem sido de pouco mais de 20 anos. É provável que Summers permaneça em Harvard por muito tempo. No entanto, é difícil visualizar como ele poderá liderar a instituição se tantos de seus cidadãos essenciais sentem que ele não compartilha os valores deles. Depois de passarmos muitas horas juntos, eu lhe disse que me surpreendi ao constatar a intensidade da antipatia que as pessoas nutrem por ele.

Summers pensou por um minuto, depois começou a falar sobre como as pessoas opõem uma resistência natural às mudanças. "Sim", disse eu, me sentindo um pouco sem jeito, "mas é de você que elas não gostam". Ele pareceu um pouco espantado (pela primeira vez), depois disse, em voz baixa: "Sinto muito por saber disso".

Na realidade, porém, ele não sentia nada. "Minha abordagem é agressiva e desafiadora", explicou, com um daqueles sorrisos rápidos e constrangidos que às vezes insere no meio de uma frase, "e é possível que tenha havido momentos em que as pessoas tenham se sentido desrespeitadas. Com toda certeza, nunca foi essa minha intenção".

Por outro lado, acrescentou: "Não vejo a liderança como um concurso de popularidade".

     

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