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28/10/2003 - 02h46

Artigo: A redação do Enem: destruindo o mito

JOSÉ LUÍS MARQUES LÓPEZ LANDEIRA
especial para a Folha de S.Paulo

Segundo a mitologia, Sísifo foi condenado a empurrar eternamente uma enorme pedra montanha acima. Quando finalmente chegava ao topo, deixava-a rolar e recomeçava. Essa imagem de esforço inútil representa bem o que ocorre com a educação brasileira. Para cada mudança de governo, a educação, à semelhança da pedra de Sísifo, rola montanha abaixo, transformando todo o avanço anterior em fracasso.

Fábio Machado
A mentalidade pragmática da política educacional do governo Fernando Henrique Cardoso instituiu diversos instrumentos de avaliação nos diferentes níveis de aprendizado formal. Um desses instrumentos é o Enem (Exame Nacional de Ensino Médio), composto de uma prova de múltipla escolha e de uma redação cujo tema, neste ano, solicitava ao aluno uma reflexão sobre a violência no Brasil.

Se a correção das questões de múltipla escolha apenas exige um bom sistema de leitura óptica, a correção das redações é um processo muito mais elaborado. Um volume de cerca de 1,3 milhão de redações de todos os cantos do Brasil fornece um mapa da realidade de como o aluno brasileiro escreve ao concluir o ensino médio. Dificilmente encontramos no mundo um outro exame que, com essas dimensões, avalie a escrita do aluno.

Durante um mês, cerca de 700 professores de português, selecionados de antemão, corrigem cem redações em um turno de quatro horas. Na correção, avaliam não apenas a capacidade do aluno de dominar as regras gramaticais da norma padrão mas também de construir um texto coerente com a proposta apresentada e com a sociedade em que vivemos. Cada redação é corrigida pelo menos duas vezes. Redações que suscitam dúvidas recebem a atenção da própria coordenação do exame.

Sempre há muitas surpresas no processo de correção. Encontramos mentes lúcidas que relacionam o aumento da violência a problemas sociais como o baixo nível educacional, a má distribuição da renda e o desemprego. Também encontramos referências a balas perdidas e à incerteza de voltar para casa, pelo medo de assaltos e sequestros. Não faltam soluções bombásticas, como a implementação da pena de morte ou de leis de amputação de partes do corpo.

O corretor verifica não haver, em uma significativa parte dos alunos que deixa o ensino médio, diferenças entre problema e solução. Vivendo um cotidiano violento, sem experiência legítima de cidadania, parte desses alunos comprova em suas redações que a instituição escolar, mesmo aquela parcela pertencente à rede particular, tem falhado em seus objetivos. Algumas redações revelam uma perspectiva perigosamente messianista e simplificada da realidade, responsabilizando unicamente ao governo pela atual situação violenta e propondo que o presidente dê emprego para quem quer trabalhar e comida para quem tem fome.

Os maiores problemas de escrita constatam-se não na capacidade de usar a norma padrão da língua portuguesa, o chamado português correto, mas principalmente na capacidade de selecionar e organizar o pensamento em um texto argumentativo, na defesa de uma opinião sobre um assunto do cotidiano. Isso mesmo se considerarmos que se trata de um aluno adolescente, ainda que boa parcela das redações pertença a adultos que frequentaram sistemas supletivos de aprendizagem.

À primeira vista, as redações do Enem revelam não só o despreparo de muitos dos alunos em construir e defender um ponto de vista que ultrapasse as barreiras do "achismo" como também o despreparo do ensino médio em formar esse aluno. Tanto a rede particular como a rede pública falham em desenvolver as habilidades dos alunos em desenvolver, estruturar e defender o seu pensamento.

Numa redação aparentemente escrita por uma pessoa muito simples, uma sugestão que faz pensar: "Devemos alfabetizar os alfabetizados". É possível que o autor dessa frase tenha intencionado dizer outra coisa, mas no que efetivamente disse reside uma importante verdade, que deveria nortear as políticas educacionais: devemos nos preocupar com a qualidade da escrita daqueles que escrevem. Medir a capacidade de usar a escrita na sociedade é um primeiro passo fundamental.

Como instrumento de medição, o Enem tem funcionado perfeitamente. Mas medir a febre de um doente não significa curá-lo. Também não resolve quebrar o termômetro e passar a afirmar que a doença não existe. Alguns setores do governo falam em terminar com o Enem ou, pelo menos, com a redação; outros pensam em acrescentar-lhe novidades. Antes de fazer, mais uma vez, que se percam conquistas que representam uma significativa melhora na qualidade do nosso ensino, convém pensar que a grande questão reside não na qualidade do exame em si, que é reconhecidamente boa, mas no que ocorre com as redações após esse exame. De momento, muito pouco.

Não há ainda uma pesquisa sistematizada dessas redações na profundidade com que o Enem permite. Isso revela-se um desperdício de dinheiro público e do futuro dos alunos brasileiros. Pesquisas sérias das instituições educativas possibilitariam mapear de forma precisa a realidade geográfica e social da escrita no Brasil, permitindo traçar um quadro das dificuldades reais e orientar parte dos projetos públicos na área de educação, inclusive a formação de professores.

Não parece ser o momento de setores do governo desmerecerem o Enem, somente como crítica ao governo anterior. Não vale a pena pagar o preço do retrocesso nas conquistas já realizadas. Temos em mãos a oportunidade de romper com o mito de Sísifo, fazendo a enorme pedra da educação brasileira avançar e superar a montanha das desigualdades sociais e mercadológicas, conquistando um lugar ao sol.

José Luís Marques López Landeira, 36, é doutorando em educação e linguagem pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, professor de metodologia do ensino da língua portuguesa e supervisor da correção de redações do Enem 2003.

     

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